spoiler visualizarLarissa.Gimenes 03/01/2024
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Spoilers: vou basicamente narrar o livro inteiro. Os últimos parágrafos resumem a crítica.
O livro tinha uma ótima proposta: um vírus afetou todos os animais impedindo o consumo de carne, o que fez a população passar a se alimentar de carne humana. O personagem principal trabalha em um dos matadouros, na linha de frente de produção, e o acompanhamos nos terrores da sua rotina. Achei que ia ser uma super crítica aos abusos da indústria pecuária capitalista mas acabou sendo bem raso. O principal, que eu achei que ia meter a mão na massa e enlouqueceria aos poucos é, na verdade, o chefe da maioria dos trabalhadores, o que o deixa distante de todo o processo. A maneira que o livro mostra as etapas do manuseio da carne também é super impessoal. A escrita não ajuda: eles sempre falam "show, don't tell" e esse livro é apenas a parte do "tell", o leitor não consegue imergir em nada. A primeira vez em que as portas da indústria se abrem para o leitor começa com o principal chegando em uma fábrica e se integrando com um visitante para um "tour". O que acontece na fábrica é contado à medida que os personagem andam pelos corredores, observando tudo de uma forma distante, por vidros, passando de sala em sala. A segunda vez que tudo é desvendado também é feito por meio de um tour, agora com candidatos ao emprego, com o mesmo esquema do corredor e janelas. Por último, no laboratório, mais uma vez o bendito tour. Como eu disse: impessoal e distante. Além de repetitivo.
Tirando isso, a grande maioria do livro é o personagem pensando sobre a própria vida, que por sinal é super maçante. Ele é apenas um homem mais velho, sem personalidade, sem objetivos, sem ambição, estoico, que não faz absolutamente nada para ser respeitado e ainda assim todos o respeitam. Alguns escritores clássicos usam desse modelo e sucedem, mas nesse caso foi completamente falho: o homem comum apenas se tornou desinteressante, quando o objetivo seria transmitir familiaridade. Para enfaizar o quanto ele é foda (apesar de comum), todas as mulheres do livro aparentam querer chupar o pau dele. A única personagem feminina onde a intenção sexual não é viável, por ser a irmã, é retratada como imbecil e mesquinha (lógico).
Já no começo do livro percebe-se qual vai ser o plot principal, e, surpreendentemente, não é sobre as atrocidades cometidas pela indústria da carne. O principal recebe uma "escrava" de presente, uma "cabeça", que é um dos humanos produzidos para consumo, e aí a gente já consegue imaginar onde vai dar. Ela é uma menina linda e indefesa, incapaz de falar ou se comunicar de qualquer outra maneira, completamente submissa: a mulher perfeita após a esposa ter sofrido um aborto e o casamento estar em ruínas. Em dados momentos ele chega a expressar com ressentimento o fato de a esposa estar afastada, lidando com o trauma de perder um filho, porque o sofrimento dele é sempre retratado como o maior, o famoso "he's crazy your honour, his wife miscarriage" (referência de pink guy e muitas defesas chulas, tanto que já virou piada). Por algum motivo, se apaixonar pela escrava é retratado como um reflexo de moralidade e pureza, da mesma forma que a estuprar é narrado apenas como sexo. Apesar de a menina não ter nenhuma capacidade de consentir ou compreender o que é um ato sexual, o foco é apenas no desejo e impulsos do personagem principal.Tentando conter esses impulsos, antes de o ato de fato acontecer, ele se encontra com outra mulher. É um encontro sexual violento que acontece na frente do parceiro dela, tendo o objetivo de deixar claro, mais uma vez, como o principal é superior. Depois de engravidar a pobre escrava, ele a deixa trancada em um cômodo sem mobília, apenas com um balde que serve como banheiro. A desculpa é a de protegê-la, ela é tão incapaz que não consegue interagir com nenhuma parte da casa de forma segura, o que mostra, novamente, sua incapacidade em consentir a um relacionamento.
Quando a menina finalmente entra em trabalho de parto, quem ele chama pra ajudar? A coitada da esposa. Ela é uma enfermeira, e toda a situação traumática que ela passou tentando engravidar e então perdendo o bebê é deixada de lado. Claro que o choque ao perceber que está sendo traída e o que o marido engravidou uma escrava também é ignorado. Ela entra em ação e chega a CHORAR de felicidade quando o bebê nasce. E então o grande plot twist é revelado: todo mundo é maluco! O personagem principal nunca foi bom! Quem diria! Ele mata a escrava e fica com o bebê.
Além disso, todas os instrumentos narrativos são repetitivos: os mesmos tours pela fábrica, a mesma frase narrando ele acendendo um cigarro a cada três parágrafos, a mesma estrutura para narrar os sonhos, as idas repetitivas ao zoológico abandonado onde ele pensava no passado com a intenção de passar a ideia de introspecção, que no fim era só mais do mesmo de uma forma maçante.
No meio do livro aparece algumas vezes o discurso de que "o vírus é falso, é uma invenção do governo para controlar as massas" e ele é o cara mais inteligente por ser o único a pensar assim e não acreditar nas vacinas. Me trouxe a vibe do nosso querido Olavo de Carvalho e de quem concordava que o covid era uma teoria da conspiração.
Algumas outras coisas que o personagem fazia pra passar a ideia enganosa de bom moço: sustentava o pai dele, que estava internado em uma clínica e fazia visitas (um grande herói!). Não tinha medo de tocar em cachorrinhos. Não comia carne. Preferia viver no campo e renunciava à futilidade das grandes cidades.
Tudo que eu citei pode ser interpretado como os "sinais escondidos" de que ele era louco, porém o livro conseguiu ao mesmo tempo falhar em retratar o personagem como bom e moral para enganar o leitor no fim, e em um foreshadowing aceitável de que ele era ruim o tempo inteiro. Senti que a crítica aos abusos da indústria da carne foram rasas e superficiais, enterradas nessa baboseira toda, protegidas por uma janela de vidro e resumidas por um simples "E se fosse com a gente?".
E sim, eu entendi que o personagem é uma sátira de si mesmo como em Psicopata Americano, O Clube da Luta e em O Iluminado. É que para mim, foi uma crítica mal executada.