Nathalia 05/07/2022
"Eu sou o povo" (pág.646)
Em uma das noites mais frias do inverno inglês, uma urca se prepara para, clandestinamente, deixar o país; entre as correrias dos tripulantes em fuga, é possível ver uma criança, trabalhando como um adulto, ignorada como um objeto qualquer. Na partida, ela é deliberadamente deixada para trás, descartada como algo sem importância, e é obrigada a, tão nova, lutar por sua sobrevivência.
No tortuoso caminho percorrido e em meio a tantas provações, o órfão Gwynplaine, carregando um riso eterno em seu rosto desfigurado ao nascer, acaba por ter a sorte de encontrar para si uma família: Dea, uma menina cega resgatada dos braços de sua mãe morta por congelamento e fome, Ursus, um saltimbanco filósofo afeito a solilóquios, e Homo, um lobo dócil e inteligente.
Anos depois, vivendo das apresentações de sua trupe e de sua habilidade em causar riso aos outros a partir de sua condição teratológica, Gwynplaine, por meio de uma revelação inesperada, começa a fazer parte de uma trama que pode mudar para sempre sua vida - e sua identidade.
Reflexões.
A narrativa construída por Victor Hugo em "O Homem que Ri" é como um grande tecido, em que todos os caminhos e acontecimentos - desde as leis inglesas até o atirar de uma garrafa no oceano - acabam por se interligar e urdir o destino de nosso herói, o saltimbanco desfigurado Gwynplaine. De fato, muitas das crenças e concepções do autor estão claramente desenvolvidas nesse livro, especialmente suas inclinações religiosas - a ideia de transcendência, no sentido de salvação ou renascimento para a verdadeira vida, a soberania da alma sobre a carne, a ideia de Providência, que é onipotente e justa, entre outras - e políticas.
Sua maior crítica nesse último sentido é dirigida à própria aristocracia inglesa, descrita com ironia e sarcasmo mordazes que demonstram sua hipocrisia e ausência da pretensa civilidade que a ela é imputada pela tradição. Victor Hugo contrapõe, desse modo, imagens de grandeza e imponência a ações, tendências e pensamentos marcados pela crueldade, selvageria, e parasitismo, especialmente voltados ao povo (encarnado na imagem de Gwynplaine, desfigurado a bel prazer régio). Pensando por esse caminho, e considerando principalmente o intenso discurso de Gwynplaine à Câmara dos Lordes, uma profecia evidente - já que o narrador oniciente fala a partir de um lugar futuro - da grande Revolução Francesa que abalou a nobreza na Europa como um todo, o que se pode observar é a construção de um pensamento político republicano que pensa a respeito dos acontecimentos de 1793 (o Terror jacobino), procurando não apenas entendê-lo, mas também justificá-lo a partir da brutalidade histórica da monarquia.
" Eu sou um símbolo. Ó onipotentes imbecis, abram os olhos. Eu encarno tudo. Represento a humanidade tal como os seus amos a fizeram. O homem é um mutilado. O que me fizeram foi feito ao gênero humano. Deformaram-lhe o direito, a justiça, a verdade, a razão, a inteligência, como a mim os olhos, o nariz e os ouvidos; como a mim, puseram-lhe no coração uma cloaca de cólera e dor, e na face uma máscara de contentamento." (Pág.646)