Flávia Menezes 05/03/2024
DOSTÔ E O COMPLEXO DE ELECTRA.
?A Senhoria? (ou ?A Anfitriã?) é uma novela do escritor, filósofo, psicólogo e jornalista do Império russo Fiódor Dostoiévski, escrita em 1847, e publicada sua primeira parte originalmente no jornal ?????????????? ???????? (?Anais da Pátria?) em outubro do mesmo ano, e a segunda parte na sequência, em novembro.
Nesta história somos transportados para São Petersburgo, onde um jovem bastante solitário e desafortunado, chamado Vassíli Mikhailovich Ordínov, está em busca de uma nova moradia, quando se depara com a jovem Katierina, por quem sente um amor quase que instantâneo, que o deixa obcecado em descobrir o que uma jovem tão bela como ela faz ao lado de um homem sombrio tão mais velho do que ela.
Divida em duas partes, na primeira acompanhamos o olhar observador e bastante curioso do protagonista, que nos convida a entrar em sua mente e ver a sua vida através da sua percepção, repleta de singularidades, nos fazendo caminhar pelas ruas da cidade, e apreciar cada detalhe, mesmo o mais ínfimo, do mundo que o cerca.
Quando Ordínov deixa o lugar onde vivia para ir em busca de um novo lugar para morar, chega a ser sensorial essa experiência de acompanhar a forma como ele vai percebendo as pessoas ao seu redor, com seus sons e vozes e expressões, revelando o quanto ele está sedento por enfim poder se relacionar com essas pessoas que tanto lhe causam estranheza, mas também que tanto o fascinam.
Mas entre essa multidão de rostos, ele percebe a beleza feminina delicada de Katierina, e essa atração é tão grande que ele passa a segui-la, observando cada um dos seus passos, tentando compreender o que acontece entre ela e esse homem mais velho, cujo olhar parece esconder algo de maligno.
Uma percepção que tive nesta primeira parte, é em como é comum nas histórias do Dostoiévski essa obsessão do protagonista pelas mulheres que são belas por conta dessa delicadeza, com sua fala e gestos tão singelos, que chega a parecer que se trata de algum ser etéreo.
Uma outra observação importante que gostaria de fazer sobre essa primeira parte, é que essa forma como o protagonista absorve e apreende o mundo, e principalmente as pessoas ao seu redor (em especial a jovem Katierina e seu acompanhante misterioso) é essa quantidade (absurda!) de inferências que ele faz.
Ordínov não nos fala das pessoas como elas são. Ele fala do que ele imagina que elas sejam!
Sabe quando vemos aquelas frases nas redes sociais que dizem: ?Não suponha, não deduza, não ache, mas pergunte!?. Então... é o que Ordínov deveria ter feito.
Por mais que Dostoiévski tenha sido um exímio psicólogo, eu fiquei com a sensação de que tudo o que eu via o Ordínov falar sobre os demais personagens eram coisas nulas, porque eram apenas parte das fantasias que ele tinha sobre elas.
E veja bem, por mais que, quando temos uma narrativa em primeira pessoa, já tenhamos plena consciência de que o narrador não é confiável, já que veremos o mundo através da sua percepção, sem saber com os outros pensam ou sentem, nesta novela, o olhar do Ordínov estava puramente contaminado pelas suas distorções perceptuais.
Quando eu li ?A Trégua?, do Mário Benedetti, o que mais admirei na história, era a forma como o protagonista tinha um senso de percepção do mundo tão honesto, a ponto de apresentá-lo o mais fiel possível. Ele não inferia as características dos outros personagens, mas descrevia os personagens através do que diziam ou de como se comportavam com ele.
É a diferença de quando eu suponho algo sobre o que alguém pensa ou sente, de quando eu falo ao outro o que eu vejo nele como acontece quando fazemos um exercício chamado ?Janela de Johari? (quem já o fez, vai saber exatamente o que estou tentando dizer aqui!).
A ?Janela de Johari? é uma técnica de autoconhecimento, cujo objetivo é mostrar (de maneira visual, através de palavras escritas) a relação existente entre a nossa percepção de nós mesmos, e a forma como as outras pessoas nos enxergam. Ou seja, quando passamos por esse exercício, podemos comparar as qualidades, defeitos e até comportamentos que acreditamos ter, com o que outras pessoas (que convivemos mais diariamente, seja no âmbito pessoal ou profissional) veem que nós temos.
Tudo isso acontece através de feedbacks, e muitas vezes podemos nos surpreender achando que agimos de forma mais séria (por exemplo), quando outra pessoa com quem convivemos nos vê como uma pessoa altamente animada. Isso acontece porque a forma como acreditamos que os outros estão percebendo nossas atitudes ou comportamentos, pode ser diferente do que eles realmente veem.
Faço essa breve explicação, porque confesso que essa parte chegou até a me incomodar, porque foi uma parte tão nula, que confesso me deixou um pouco entediada.
Mas através dessa sede de contato, dessa obsessiva paixão fantasiosa que ele nutria pela sua nova ?senhoria?, que Dostoiévski me levou a segunda (e indiscutivelmente mais brilhante) parte desta história.
Se Freud leu essa novela, ele deve ter entrado em êxtase, já que nesta segunda parte acompanhamos tanto a relação edipiana que Ordínov estabelece com Katierina, quanto uma velada (e bastante chocante!) relação entre Katierina e seu companheiro mais velho (que depois descobrimos se tratar do seu esposo), chamado Múrin, com ares de Complexo de Electra.
Nesta segunda parte, algo que eu já havia visto em ?O duplo? (ou ?O sósia?), romance de Dostoiévski que antecede a esse, e se repete aqui, é esse sentimento de perseguição do protagonista, repleto de fantasias de estar sendo enganado e humilhado pelos outros, que na verdade só esconde por trás apenas esse forte medo da rejeição.
Digo isso não porque quero fazer uma análise psicológica do personagem, mas porque é exatamente esse mesmo sentimento que por tantas vezes Joseph Frank (estudioso literário americano e um dos principais especialista na vida e obra de Fiódor Dostoiévski) relata sobre o próprio Dostoiévski em sua biografia sobre a vida do autor.
Mas apesar dessas ideias delirantes do protagonista, o que mais conquista nesta história é que sua narrativa traz muito dos contos folclóricos cossacos, e nesta parte, esse clima mais gótico, e os símbolos que surgem, deixam a trama ainda mais fascinante.
A temática por trás da história é tão ousada, tão provocante, que não consegui parar de ler até poder terminá-la!
Todo esse vinho que embriaga (desejo sexual), e essas facas (símbolo fálico) que surgem em momentos em que o outro (pai ou mãe) dorme, vai nos revelando todo esse jogo sexual cheio de ousadia oculto em uma série de frases tão enigmáticas dos diálogos, que mesmo esta sendo uma história tão curta, não perde em nada para as outras obras deme, porque (como sempre!) é igualmente repleta de significados.
Apesar desta não ter sido uma das suas obras mais admiradas no momento de sua publicação (quando o autor inclusive já passava pelos problemas de ter sido preso por ser acusado de conspirar contra o czar Nicolau I), ?A Senhoria? é uma novela tão única, que vai muito além do revelar a mente humana, para trazer, através dos contos folclóricos, um universo rico em simbolismos tão sedutor quanto instigante, onde tudo é dito de uma forma tão furtiva, que quando menos esperamos, ficamos em choque!
Obs.: quem tiver interesse em saber mais sobre p exercício da ?Janela de Johari?, tem uma animação que pode ser encontrada no YouTube, de 9 anos atrás (postada por Joilson Melo), que explica bem o que é. Vale a pena conferir! ?