Steph.Mostav 18/04/2022"Sua reação, portanto, não foi contra a vacina, mas contra a história.""A Regeneração significou um processo tétrico de segregação, inculcado num prazo curtíssimo, de elevado custo social, humano e econômico, e intransigente em todos os aspectos. Seus responsáveis foram aumentando numa escala crescente a dose de opressão e humilhação infligida à população desamparada, como que a testar os limites de sua resistência."
"A revolta não visava o poder, não pretendia vencer, não podia ganhar nada. Era somente um grito, uma convulsão de dor, uma vertigem de horror e indignação. Até que ponto um homem suporta ser espezinhado, desprezado e assustado? Quanto sofrimento é preciso para que um homem se atreva a encarar a morte sem medo? E quando a ousadia chega a esse ponto, ele é capaz de pressentir a presença do poder que o aflige nos seus menores sinais: na luz elétrica, nos jardins elegantes, nas estátuas, nas vitrines de cristal, nos bancos decorados dos parques, nos relógios públicos, nos bondes, nos carros, nas fachadas de mármore, nas delegacias, agências de correio e postos de vacinação, nos uniformes, nos ministérios e nas placas de sinalização. Tudo que o constrange, o humilha, o subordina e lhe reduz a humanidade. Eis os seus alvos, eis o que desperta sua revolta, e o seu objetivo é assumir e afirmar, ainda que por um gesto radical, ainda que por uma só e última vez, a sua própria dignidade. O resto é a agonia e o silêncio."
"Posta dessa forma, temos uma divisão maniqueísta que opõe as forças do bem às forças do mal; os representantes da ordem e os insufladores do caos. Uma lógica mítica, arbitrária e desumanizada: somente a interpretação de um dos lados prevalece e se impõe: aquele que for mais forte. Esse tipo de raciocínio, que esvazia a humanidade do outro, transformando a sua diferença numa ameaça, esteve por trás de todos os grandes massacres da história, dos processos inquisitoriais à conquista da América e a eventos bem mais recentes na nossa história contemporânea."
"Essa separação ética dos corpos, corpos rebeldes, corpos doentes, corpos sãos, preconizava e era simétrica a uma nova divisão geográfica da cidade. Nela, igualmente, desde o início do século, como vimos, a homogeneidade original dava progressivamente lugar a uma discriminação dos espaços. A enorme massa popular dos trabalhadores, subempregados, desempregados e vadios compulsórios foi sendo empurrada para o alto dos morros, para as áreas pantanosas e para os subúrbios ao longo das estradas de ferro e ao redor das estações de trem. Nesse espaço, aproveitando as facilidades de transporte e a oferta maciça de força de trabalho, instalou-se também o parque fabril que circunda a cidade. O Centro, por sua vez, tornou-se o foco de toda agitação e exibicionismo da burguesia arrivista: seu pregão, sua vitrine e seu palco. A zona sul, beneficiada pelos investimentos prioritários das autoridades municipais e federais, se constituiu no objeto de uma política de urbanização sofisticada e ambiciosa, voltada para os poderosos do momento, que encheu de vaidade os novos ricos e de lucros os especuladores."
"A inspiração dessa estratégia procede do modelo de tratamento reservado aos escravos e que vigorou até a Abolição. A revelação notável é que o que antes fora uma justiça particular, aplicada no interior das fazendas e casas senhoriais, tornou-se prática institucional da própria autoridade pública no regime republicano.
Aos pobres em geral, nessa sociedade, não se atribuiu a identidade jurídica de cidadãos, inerente à República. Na prática, era reservado a eles um tratamento similar ao aplicado aos antigos escravos, controlados pelo terror, ameaças, humilhações e espancamentos, com o Estado assumindo as funções de gerente e de feitor. Nesse momento de transição brusca e traumática da sociedade senhorial para a burguesa, muitos dos elementos da primeira foram preservados e assimilados pela segunda, sobretudo no que diz respeito à disciplina social. A vasta experiência no controle das massas subalternas da sociedade imperial não podia ser desperdiçada pela nova elite."
"Os conceitos de capitalização, aburguesamento e cosmopolitização talvez sejam os mais abrangentes e aqueles que identificam as raízes mais profundas do processo que acompanhamos e cujo efeito mais cruel foi a Revolta da Vacina. Foi nesse contexto que observamos o conjunto de transformações que culminaram com a reformulação da sociedade brasileira, constituindo a sua feição material mais aparente e ostensiva, o processo de Regeneração, ou seja, a metamorfose urbana da capital federal, acompanhada das medidas de saneamento e da redistribuição espacial dos vários grupos sociais. Esse processo de reurbanização trouxe consigo fórmulas particularmente drásticas de discriminação, exclusão e controle social, voltadas contra os grupos destituídos da sociedade. E foi na intersecção sufocante dessa malha densa e perversa que a população humilde da cidade viu se reduzirem a sua condição humana e sua capacidade de sobrevivência ao mais baixo nível. A soma dessas injunções, vistas pelo seu ângulo, traduzia-se em opressão, privação, aviltamento e indignidade ilimitados. Sua reação, portanto, não foi contra a vacina, mas contra a história. Uma história em que o papel que lhes reservaram pareceu-lhes intolerável e eles lutaram por cuja mudança."