Pandora 13/01/2023
Talvez por estar de férias, talvez por ser o início de um novo ciclo, em Janeiro é muito fácil me pegar lendo livros esquecidos na pilha dos "não lidos". Geralmente esse é o mês no qual dou atenção aquela edição que sempre quero ler ou comecei a ler e não dei continuidade por um motivo ou outro e nessa os anos vão passando. "A Bolsa Amarela" da Lygia Bojunga é um desses livros há muito colocados na pilha e um pouco mais. Comecei a ler esse livro na minha época de escola, há mais de 20 anos atrás, li até a metade, achei divertido, mas não concluí a leitura por algum motivo, jamais esqueci dele, quando vi na biblioteca da escola na qual trabalho, peguei emprestado e agora, finalmente, recomecei a leitura e termine MUITO satisfeita.
"A Bolsa Amarela" é narrado em primeira pessoa por uma garota chamada Raquel, ela é a filha mais nova de um conjunto de quatro irmãos (Raquel mais duas irmãs, e um irmão), só esse detalhe já tornaria ela o membro da família menos ouvido, mas a essa característica se soma o fato dela ter nascido quando a mãe dela não esperava mais engravidar e os irmãos já eram bem crescidos. A Raquel é uma criança dentro de uma família onde todos já são adultos e os irmãos a fazem sentir "não desejada".
Os parentes de Raquel não fazem por mal, mas a estrutura familiar sufoca a garota e suas vontades. Aliás, as três vontade dela são o coração da história: a vontade de crescer, a vontade de ter nascido garoto e a vontade de escrever. Para desabafar e comunicar essas vontades, a menina cria amigos imaginários com os quais se correspondem através de cartas, bilhetes, telegramas.
"Tô sobrando, André. Já nasci sobrando. [...] Um dia perguntei pra elas: "Por que é que a mamãe não tinha mais condição de ter filho? Elas falaram que a minha mãe trabalhava demais, já tava cansada, e que também a gente não tinha dinheiro pra educar direito três filhos, quanto mais quatro.
Fiquei pensando: mas se ela não queira mais filho por que é que eu nasci? Pensei nisso demais, base? E acabei achando que a gente só devia nascer quando a mãe da gente quer ver a gente nascendo. Você não acha, não?" (pág. 9)
Quando comecei a ler "A Bolsa Amarela" na adolescência, achei o livro muito divertido e me identifiquei com a Raquel por também gostar de escrever, coleciono caderno de anotações da minha época de escola onde falava para ninguém sobre livros, paisagens, pessoas que passavam na rua, sentimentos e sensações... também lembro de ter achado divertida as situações nas quais a imaginação da menina a colocavam.
Pense numa garota imaginativa! No dia que ela ganha a Bolsa Amarela, faz dela seu baú no qual guarda objetos aos quais ela atribui personalidade, nome e voz e também personagens imaginários. Para a mulher de 36 anos a Raquel é pura candura, uma criança maravilhosa lidando com o desamparo de ser solitária entre adultos com imaginação e criatividade. Ela procura um meio de lidar com suas vontades, de dialogar com elas, de fazer com que parem de crescer... e encontra! Conversando com seus seres imaginários, vivendo a aventura de existir, ela consegue entender algo sobre si mesma, se libertar daquilo que lhe pesa na bolsa, se entender consigo mesma.
"A Bolsa Amarela" é um livro de 1976 e aborda o machismo, a forma como o irmão e o pai tem mais poder dentro da estrutura familiar é que faz a Raquel sentir o desejo de ser menino; assim como a falta de escuta e respeito as crianças dentro da família faz a garota desejar ser grande. Quanto a escrever, isso é da garota mesmo, ela se deu essa vontade é o talento dela, talvez isso seja um traço autobiográfico no livro.
Lygia Bojunga é uma autora sensacional. As discussões sobre o trato com as crianças, tão corriqueiras atualmente, estão todas presentes no livro. Não por acaso ele foi tão premiado. Um livro escrito de uma forma gostosa, em uma linguagem realmente gostosa falando de uma família brasileira através do olhar de uma menina, uma história cheia de aventuras e personagens cativantes, defendendo ideias de igualdade entre os gêneros e pessoas de diferentes idades. Eu amei muito! Quero ler mais da Lygia Bojunga!
Na minha infância também houve momentos nos quais minha família riu muito de mim por conta da minha necessidade de escrever sobre a vida, mesmo agora sinto certo receio em relação a como as pessoas podem receber meus escritos, mas me identifiquei muito com a resolução final da Raquel:
"... resolvi que se eu queria escrever qualquer coisa eu devia escrever e pronto. Carta, romancinho, telegrama, o que dava na cabeça. Queriam rir de mim? Paciência. Melhor rirem de mim do que carregar aquele peso dentro da bolsa amarela." (pág. 77)
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