skuser02844 27/05/2023
Pra colocar a gúliver pra funcionar
“Então, o que é que vai ser hein?”
É assim que Alex e seus amigos iniciavam suas noites. Sentados no Korova, uma leiteria que vendia o bom e velho Moloko (leite mesmo) misturado a drogas sintéticas. Depois, o grupo partia para sua famosa ultraviolência. Realizava roubos, espancamentos, invasões, estupros e tudo mais que viesse a passar pela cabeça dos adolescentes.
É possível identificar que Anthony Burgess traz o assunto da delinquência juvenil e da criminalidade, em uma obra que é uma distopia, mas que ao meu ver, perto de outras (como Admirável Mundo Novo), não chega a ser tão distopia assim, simplesmente pelo fato de que é possível imaginar diversas situações do que ocorre naquele período, em nossa sociedade atual.
Com o governo totalitário da época entendendo que somente prender os jovens criminosos e arruaceiros não resolvia o problema, colocou-se em prática um novo método, chamado de “Técnica Ludovico”, que consistia basicamente numa lavagem cerebral que prometia promover a cura comportamental dos criminosos.
Alex então, tempos após ser preso, aceita ser utilizado como cobaia desse método, sem saber exatamente no que este consiste, visando apenas uma forma de conseguir a sua liberdade de maneira mais rápida.
O fato dessa técnica ser bastante dolorosa física e mentalmente, por acabar transformando Alex num ser condicionado pelas suas sensações corporais e não simplesmente por sua mudança de mentalidade, traz a discussão sobre a liberdade individual e o condicionamento psicológico. Alex é forçado a assistir filmes que mostram diversas atrocidades, tudo isso regado a uma trilha sonora completamente amada por ele, a música clássica e em especial, Beethoven, enquanto algo é injetado em seu corpo, o fazendo ter sensações terríveis e associando essas sensações com as imagens que vê. Assim, acaba sentindo repulsa simplesmente por pensar em realizar os atos violentos que antes lhe davam enorme prazer. Isso o faz se sentir mal inclusive ouvindo as músicas que mais gosta, tirando dele toda e qualquer oportunidade também de ser sensível à arte, e inclusive ao sexo.
Em determinado momento, se sentindo apenas uma coisa programada, Alex diz: “Será que eu serei apenas uma laranja mecânica?”. Realmente, é difícil imaginar uma laranja, algo completamente orgânico e particular, existindo de uma forma mecanizada, chega a ser estranho. E é essa estranheza que pode ser sentida por Alex e também pelo leitor ao imaginar os instintos, sensações e liberdade humanos — por mais que horrendos muitas vezes assim como no filme — sendo suprimidos por um condicionamento que o torna completamente mecanizado.
A reflexão sobre a liberdade de escolha surge diversas vezes na história, e isso foi algo que me causou bastante reflexão. Trechos como “maldade vem de dentro, do eu, de mim ou de você totalmente odinokis (sozinhos), e esse eu é criado pelo velho Bog ou Deus, e é seu grande orgulho.” e “A bondade vem de dentro. Bondade é algo que se escolhe. Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser um homem”, trazem justamente essa reflexão, sobre qual o valor da bondade se o indivíduo é forçado a realizá-la, e se não é mais digno que haja a liberdade dessa escolha, ainda que o indivíduo opte pelo caminho da maldade. Essa reflexão não é apresentada somente ao leitor, mas possui também as opiniões de diversos personagens, como o padre da prisão, o diretor da prisão, e o próprio Alex, objeto de tudo o que acontece.
O último capítulo, excluído do filme e de algumas versões americanas do livro, traz um Alex alguns poucos anos mais velho, se enxergando dentro de um amadurecimento, e refletindo sobre o tempo e sobre as atitudes humanas de acordo com a idade, focando principalmente na questão dos erros e das pancadas que o adolescente vive e que segundo ele, tem que viver, sendo isso natural da nossa condição como pessoa.
É interessante que Burgess sequer possuía essa obra como uma de suas favoritas, e a escreveu de maneira apressada, após receber um diagnóstico de doença terminal de seu médico. A sua intenção era deixar o maior número de livros possível publicados, para que sua esposa tivesse uma fonte de renda após a sua morte. Assumiu inclusive que não pensou exatamente em cada detalhe com o intuito de trazer todos esses temas e reflexões, portanto, é um sucesso que se deu muito mais pelos leitores do que propriamente por uma intenção do autor de direcionar todas as suas energias para criar um grande livro, que de fato é. Acontece que no fim, o diagnóstico estava errado, e Burgess ainda teve a oportunidade de viver aproximadamente 40 anos, tendo assim a chance de assistir ao sucesso de Laranja Mecânica ao longo do tempo.
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