Davenir - Diário de Anarres 24/01/2023
Afrofuturismo brasileiro numa edição luxuosa
"O Último Ancestral" é uma ficção científica afrofuturista de Ale Santos que saiu pela Harper Collins em 2021. O Ale Santos, para quem curte podcast, sabe que ele apresenta o Infiltrados da Cast e do Ficções Selvagens. A obra é o mais recente e, certamente o maior lançamento literário de ficção afrofuturista no Brasil até o momento. Isso já podemos medir pelo alcance que a obra ganhou até o momento. O livro foi lançado pela editora Harper Collins e é um lançamento pouco comum por ser ficção científica, afrofuturista e de autor brasileiro. Elementos que separados já tem dificuldade para ter espaço numa editora grande, combinadas então nem se fala. Mas contra todas as estatísticas, “O Último Ancestral” está ai.
O livro se passa num futuro distante no Distrito de Nagast - que parece ser o Rio de Janeiro – onde acompanhamos Eliah, um ladrão de carros especialista em fugas que vive em Obambo, uma favela onde vivem quase todos os negros, segregados pelo governo de Nagast. Na cidade, dominam o Cygens, ciborgues que rejeitaram seu lado humano, acumulando poder até se tornar a casta dominante da cidade. Eles instauraram uma ditadura segregacionista que persegue a população de Obambo e qualquer manifestação religiosa.
Isso fez com que a fé fosse totalmente esquecida pela população de Obambo e os que demonstrassem qualquer traço de mediunidade eram recolhidos para a Liga da Saúde Mental de nunca mais voltam. É esse perigo que Eliah tem que enfrentar quando sua mediunidade desperta e ele precisa aprender a dominar suas habilidades para defender o povo de Obambo.
O afrofuturismo da obra é bastante evidente quando temos uma obra em que a grande parte dos personagens são negros e que lutam tanto pela própria sobrevivência como também a lutar por algo a mais. Também temos o afrofuturismo na mistura de ficção científica com fantasia que fluiu muito bem na obra. Aliás, ela flui durante a leitura em diversos aspectos. Os elementos fantásticos científicos, na tecnologia Cygen, na estética cyberpunk com tatuagens que ativam equipamentos. O autor não se perde em explicações para unir os elementos tecnológicos e os de fantasia urbana, onde os espíritos se manifestam digitalmente. Tive uma agradável lembrança de Count Zero do William Gibson, onde as entidades da Matrix se identificaram com os loas do Vodum, mas em “O Último Ancestral” o corre o inverso. São as entidades – aqui tiradas das religiões de matriz-africana no Brasil - que se manifestam no mundo digital.
Outro aspecto que me agradou foi o bom uso das gírias pelos Obambos. (algo que se mal feito poderia ter colocado tudo a perder). As falas são ágeis e objetivas, combinando com personagens que, afinal de contas, estão em uma guerra pela própria vida. O sentido de urgência ajuda num livro que é um page-turner (como se diz nos EUA daquele livro que te faz virar páginas, prendendo o leitor). Aliada a linguagem fluida, temos capítulos curtos que nos permitem acompanhar várias linhas narrativas que vão se encontrando ao longo do livro.
Aliás, os personagens secundários são bem bacanas. É muito fácil gostar de Hanna (a hacker cheia de personalidade) e praticamente impossível ficar inferente ao Zero (que fascina como todo anti-herói, inclusive toma para si, o protagonismo em diversas situações ao longo do livro). Vale destacar também o trabalho gráfico do livro, que veio em capa dura, com as primeiras páginas dos capítulos com letras brancas e fundo preto, além das artes muito bacanas e também por um preço razoável em comparação a outros equivalentes.
Contudo temos uma obra que apesar de fechar uma história completa, é a primeira de uma série ou trologia, ou seja, precisaremos de mais livros para fechar a jornada do Eliah. Pessoalmente não gosto do formato de trilogia, que depende de outras obras para contar a história toda do protagonista, mas uma vez que o universo do livro me fisgou, não me resta alternativa a não ser esperar o próximo livro que já tem nome: “A Divindade Digital”. Além de uma sequência o livro tem chances de sair das páginas literárias para outras mídias. E aqui estaremos de olho.
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