spoiler visualizarWagner269 01/03/2021
Resenha autobiográfica
Suíte Tokio,
Giovana Madalosso,
Ed. Todavia.
TEM SPOILER
livro incrivel, nota 11, pq não vou limitar a dez. rs
pode ser que um leitor mais chato encontre defeitos, eu só encontrei um livro potente, capaz de ser lido em 3 dias e ainda ter reflexão para um dia todo.
ANTI-RESENHA
Entre um cigarro e outro, e a tv ligada numa partida da NBA que não estou prestando atenção. Consumo páginas de um livro com o desejo do faminto, Giovana, passa a ser um nome distinto no meio de uma produção incessante de bons nomes na literatura contemporânea brasileira: Giovana Madalosso.
Posso imaginá-la viajando para o descampado de Mandaguaçu, sendo a Maju por horas a fio, numa casa pequena. Lembro das minhas viagens de ônibus, para Brasília, Uberaba, Belo Horizonte, Campinas, os terminais rodoviários cheio de vozes cheio de silêncios. Quantas Maju encontrei com Coras-Anas e eu nunca nem sequer me perguntei sobre elas. Sobre quem eram ou pra onde iam.
Eu era invisível também, ainda sou, mas não a mesma invisibilidade de antes. As coisas mudaram e não sei explicar como essas mudanças aconteceram. Agora estou num apartamento de cem metros quadrados, tem uma geladeira cheia. Posso me levantar e alcançar um doce ou um biscoito caro. Até nessa palavra, biscoito, há uma mudança. Minha esposa diz que bolacha é coisa de pobre. Acho que ela esquece que sou pobre, mas você é diferente, ela diz. E eu concordo com ela. Sou diferente.
Quando minto dessa forma pra mim mesmo, sinto o olhar do menino que fui me censurando. Eu ainda sou invisível, me ouço dizer.
Tentei escapar disso, mas há essa lembrança hereditária do tempo em que minha mãe, assim como a Maju dividiu um casulo com outra moça no bairro dos Jardins. As duas acordavam cedo e viviam o dia para agradar a patroa, o filho da patroa, o marido da patroa. O quarto não era tão bom quanto a Suíte Tokio, nem de longe. Eu vi na vez que ela me levou até lá. Duas camas, uma tv de tubo de 14 polegadas e um cheiro de desinfetante e mofo. Não havia janelas. E o pequeno banheiro tinha um chuveiro que molhava o vaso. A pia ficava de um jeito que seria impossível abrir a porta completamente se não fosse sanfonada.
Minha mãe vinha uma ou duas vezes para casa na semana, eu ficava acordado no desespero das horas aguardando sua chegada, minha avó dormia com o crochê na mão. Uma vez, num dos dias que ela deveria vir, ela não veio. Já passava da meia noite quando minha avó mandou que eu fosse me deitar.
Quando minha mãe apareceu, sentou ao lado da minha cama, mas mantive os olhos fechados, um pouco antes eu ouvi ela contando para minha avó que havia precisado cuidar do Vini, ele estava com uma gripe muito forte.
Uma vez minha mãe me levou para brincar com o filho da patroa, o menino tinha a mesma idade que eu, alguns meses mais velho. Num momento de altruísmo, a patroa disse para minha mãe me levar e quando eu cheguei, comentou com um sorriso, teu filho não é tão pretinho, Graça!, e pude ver o orgulho estampado no rosto da minha mãe.
O menino era um pavão que eu gostaria de enforcar. Por isso eu o provocava. Eu o provoquei o dia todo. Tudo nele me irritava, sua voz empapada de manha e minha mãe tendo que pegá-lo no colo, tínhamos sete, oito anos. E ele agia como se fosse um bebê.
Esse brinquedo não. Ele disse em algum momento, esse não, esse não, esse também não e eu disse esse sim, Wagner não arrume confusão, minha mãe disse, mas já era tarde, o boneco do super homem havia voado do sétimo andar, foi bonito de ver a capa de mentira fazendo um arco e nada dele alçar voo, eu disse que ele não voava!, e caí na gargalhada enquanto o boneco caía na área social do prédio. Vinicius chorava e pulou cima de mim, me arranhando com fúria. Minha mãe tentava nos apartar com a ajuda da sua colega.
Eu não sei ao certo o que eu odiava no Vinicius. Talvez que minha mãe passasse mais tempo com ele do que comigo, talvez sua voz fanhosa e suas maneiras educadas. Talvez ficar preso naquele apartamento, naquele parquinho ou naquela quadra de futebol. Estava acostumado a correr nas ruas, a apanhar e bater, ir até a represa de bicicleta, jogar golzinho com tijolos de construção como trave. Sei lá, ele me irritava.
Eu sabia que ele teria todas as oportunidades do mundo, enquanto eu teria que aceitar um emprego qualquer aos quinze anos, largar a escola e depois terminar através do supletivo. Minha única esperança era ser adotado por uma coroa que não se importasse com minha pouca instrução e aceite uma relação edipiana, me colocando para morar num apartamento tão grande como aquele que um dia eu visitei, com um quarto de empregada improvisado em escritório. Pra você estudar melhor, ela disse quando me deu o computador.
Minha esposa (difícil dizer esposa), dorme pesadamente, agora. A idade pesa em algum momento por mais que ela pense que será jovem pra sempre e tente resgatar isso me apresentando meio constrangida com a situação, mas intimamente com orgulho. Não é a toa que ela paga a academia, me compra as melhores roupas, e quanto reclamei que sentia falta de companhia, me deu um cachorro de aniversário. Ela me mima pra que eu continue querendo fodê-la. Eu nem precisava dizer isso em voz alta. Mas digo. Outro cigarro.
Faltando dez páginas, seis da manhã. O livro é vertiginoso. Duas narrativas, duas narradoras. Uma sabe coisas da outra que parece não saber nada. Há tantos acontecimentos reais, tantas possibilidades reais que procuro algo como ?baseado em fatos reais? na capa ou contracapa. Posso ver a Maju, a Fernanda, o Cacá e o apartamento deles. Iara com um cabelo num coquezinho, umas roupas leves. Rio percebendo que há uma epidemia de febre amarela citada rapidamente, diante do que estamos vivendo agora, a febre amarela é um dia de lazer na praia. Giovana, fez muita pesquisa sobre a invisibilidade. Fernanda e Cacá, não sabem nada sobre a mulher com quem deixam sua filha. Também há uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade atual, com mulheres cada vez mais detentoras de cargos de alto nível, precisando abrir mão do papel de mãe pra não deixarem de alcançar os mais altos cargos. Mesmo assim, não deixarão nunca de serem julgadas.
Penso em terminar de ler o livro depois, preciso esticar um pouco as pernas. A claridade já entra no apartamento. Aviso minha esposa, que vou andar um pouco e ela diz, pra eu não levar o celular. Preocupações a toa.
Pego o Verão e vamos descendo pelo elevador de serviço, cumprimento o porteiro da noite que diz, acordou cedo, seu Wagner!, eu aceno que sim, não digo nada, em geral paro e ficamos batendo papo, ele não acredita quando digo que vim do capão redondo, acho que ele pensa que me dei bem, ele nunca perguntou exatamente quem eu sou, ele sabe pelas correspondências que meu nome é diferente dos da Angelica, o sobrenome dela é italiano e alemão e o meu Moraes Gonçalves, nem chega perto de se parecer com eles.
Pensando bem, também que me dei bem. Eu estaria num cargo desses facilmente, talvez auxiliar de escritório, com meu curso supletivo que sem a aparição da minha Jocasta eu nem sei se terminaria.
Na rua, Verão e eu andamos em volta do parque. Vejo uma mulher passar com uma garotinha no colo. Elas duas se abaixam perto de uma árvore, parece que a menina saiu de um sono profundo, tem um dos pés descalço. Verão não se importa, mas eu não consigo parar de assistir a cena. A mulher fica do outro lado da rua, enquanto a menina atravessa a rua, se esforça pra tocar o interfone, não consegue. O porteiro vem ajuda-la. Olho pra arvore e a mulher desapareceu.
Verão e eu voltamos pra casa.