Coruja 11/08/2015Clássicos são livros para os quais passamos a vida retornando e, a cada releitura, acrescentam algo novo: eles dialogam conosco em diferentes épocas de nossas vidas, ensinando e nos confortando. Eles são universais por apelarem a temas e princípios comuns a todos e, ao mesmo tempo, são bastante pessoais, no sentido de que sua história acaba se misturando com a nossa.
Norte e Sul preenche todas essas condições para mim. É uma daquelas histórias que gosto de recomendar a todo mundo, para a qual retorno de tempos em tempos e que nunca falha em me deixar satisfeita quando termino. É um livro rico em questões com que todos podemos nos identificar, num dos períodos mais importantes da história ocidental, oferecendo uma admirável história de amor combinada ao debate de questões sociais; tudo isso com um elenco de personagens complexo e extraordinário.
A história ocorre na Inglaterra, em plena Revolução Industrial, uma época de extraordinários avanços tecnológicos e degradantes condições humanas. Os dois protagonistas representam a divisão do país: Margaret é o sul rural, John é o norte industrializado; ela é compaixão religiosa e justiça, ele é explorador do proletariado. Esse antagonismo é responsável por muitos dos problemas de comunicação e angústia entre os dois.
O relacionamento deles se desenvolve em meio a criação de sindicatos, crise da indústria têxtil, greves, especulação financeira, discussões sobre direitos dos trabalhadores e responsabilidade patronal. Fala de divisão de classes, do progresso e seu impacto humano.
Há quem diga que a obra-prima de Elizabeth Gaskell ecoa Orgulho e Preconceito, de Austen. Margaret Hale é orgulhosa de suas origens, de seus princípios, de sua criação. Ela é compassiva, mas nem sempre consegue compreender que o orgulho de outros prefira recusar sua caridade. John Thornton é irascível, quase inatingível em nosso primeiro contato com o personagem.
Ele se apaixona primeiro, encantado pelas maneiras, pela altivez e beleza da sulista, e Margaret, nesse momento, representa para ele quase um ideal de perfeição. É inebriado nessa ilusão que Thornton faz sua primeira declaração e a negativa de Margaret é a quebra do pedestal, necessária para que ele de fato se esforce para enxergar a mulher por trás da estátua.
Curiosamente, a partir do momento em que Margaret ‘cai da graça’ na opinião de Thornton, é que ela começa a compreender o caráter dele, entendendo exatamente o que ela deixou escapar.
É forçoso que eles se considerem perdidos um para o outro antes que possam se reencontrar e descobrir que, de fato, eles são iguais, têm os mesmos valores e princípios. Afinal, para que um casamento funcione – ao menos entre pessoas como Margaret Hale e John Thornton -, é preciso mais que paixão (e a relação dos dois é desde o começo sutilmente passional e cheia de momentos para segurarmos o fôlego), é necessário equilíbrio e uma verdadeira união de mentes para que eles possam alcançar sua felicidade.
Mas existe uma grande diferença entre Austen e Gaskell. Aqui somos apresentados a uma sociedade em profunda transformação, cujo foco não é mais uma pequena aristocracia rural: a ação se passa em centros industriais e a ascensão burguesa é um de seus motes. Margaret talvez possa se identificar com uma Elizabeth Bennet mais preocupada com convenções sociais, mas Thornton, muito diferente de Darcy, é um homem que fez a si mesmo, que trabalhou a vida inteira e superou a ruína financeira que o pai lhe deixou com seus próprios esforços.
Embora o romance de Margaret e Mr. Thornton seja a força motriz da narrativa, há dois outros personagens que roubam a cena sempre que surgem.
Mrs. Thornton, a mãe de John, é o pilar do filho, disposta a compartilhar de suas preocupações, formidável em suas opiniões, na forma como se impõe. Embora, vista do ponto de vista de Margaret ela seja quase uma megera, Mrs. Thornton é uma figura materna exemplar – na minha opinião, uma das melhores mães da literatura.
Nicholas Higgins, por sua vez, é o elo que primeiro separa e depois permite a reconciliação entre os protagonistas. Higgins é o líder por trás da união dos trabalhadores e da greve e um feroz defensor de seus companheiros. Margaret o conhece ao fazer amizade com sua filha e através dele é que começa a compreender a forma de pensar do Norte – e, com isso, entender também o próprio Thornton.
Digo logo que, para além do romance dos protagonistas, minhas partes favoritas do livro são as conversas de Thornton e Higgins, especialmente no que elas representam como alternativa à exploração dos trabalhadores.
Eu já tinha esse livro em inglês, mas quando vi a edição da Martin Claret em capa dura, fiquei babando em cima dela. O projeto gráfico é de uma delicadeza que faz jus a esse excelente romance. Em tudo, é um livro que faz gosto ter na estante e para o qual estamos sempre retornando e redescobrindo. Um clássico em todos os seus significados, sem dúvida.
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