Gramatura Alta 03/09/2023
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TODOS OS NOSSOS ONTENS se inicia com uma casa, uma rotina, uma família. O tempo passa, o ritmo cotidiano é rompido por mortes, encontros, casamentos, gestações. A cada ruptura, surgem novas rotinas, e então a voz em terceira pessoa se mistura ao olhar de Anna, a caçula, que se surpreende com o modo do hoje virar ontem; parece que uma eternidade separa a vida de antes e a nova que surge.
Não são apenas os nascimentos e as mortes que mudam a percepção do tempo. Até certo ponto, parecia que o fascismo não acabaria nunca, e então começa a se ouvir no rádio sobre a invasão da Polônia, e sobre a linha Maginot, que parecia intransponível. Mas os nazistas a ultrapassam, e num relance a guerra vira parte da vida. Se a destruição faz com que as rotinas durem sempre menos, algum resto de resiliência, inadvertidamente, consegue as reerguer, ainda que cambaleantes.
Em TODOS OS NOSSOS ONTENS, através de uma narrativa penetrante e introspectiva, somos apresentados a uma trama que transcorre na Itália, abrangendo um período que vai desde os anos anteriores à Segunda Guerra Mundial até o imediato pós-guerra. Somos imersos no ambiente de uma sociedade que vive as expectativas, os temores e as consequências de um dos conflitos mais devastadores da história moderna da Itália e da Europa como um todo.
Para contextualizar, a Itália estava sob a liderança de Benito Mussolini e seu regime fascista desde 1922. Mussolini consolidou seu poder através da censura, da supressão de opositores e da propagação de propaganda nacionalista, que se caracterizava pelo totalitarismo, pela exaltação do estado e pela promoção de valores tradicionais. Durante a década de 1930, a Itália se aproximou da Alemanha nazista de Hitler, culminando no Pacto de Aço em 1939. Isso alinhou a Itália com a Alemanha durante a iminente Segunda Guerra Mundial.
Em 1940, a Itália entrou na guerra ao lado da Alemanha nazista. Inicialmente, enfrentou reveses militares, especialmente na África do Norte contra as forças britânicas. Em 1943, após várias derrotas e com o avanço dos aliados, Mussolini foi deposto e preso. A Itália assinou um armistício com os aliados e foi ocupada pelas tropas alemãs. Isso levou a uma situação dividida: o norte da Itália, sob controle alemão, onde Mussolini estabeleceu a República Social Italiana com o apoio dos nazistas, e o sul da Itália, sob controle dos aliados.
Durante a ocupação nazista no norte, surgiu um forte movimento de resistência partisana. Esses grupos, muitas vezes comunistas e socialistas, realizaram uma guerrilha contra as forças de ocupação alemãs e os fascistas italianos. Com o avanço das forças aliadas e o apoio da resistência partisana, a Itália foi completamente libertada em 1945. Mussolini foi capturado e executado por partisanos italianos. O período de guerra e os anos imediatamente posteriores foram marcados por divisões profundas na sociedade italiana, traumas e transformações. Muitas famílias, incluindo as da autora de TODOS OS NOSSOS ONTENS, foram diretamente afetadas pelo fascismo e pela guerra.
TODOS OS NOSSOS ONTENS se concentra na vida de Anna, que testemunhou as transformações da Itália e as repercussões dessas mudanças em sua vida pessoal. Somos apresentados a uma série de personagens, desde membros da família de Anna até amigos e conhecidos, cada um carregando consigo as marcas e as experiências proporcionadas por esse momento histórico. Eles tornam-se reflexos das diversas formas como a guerra impacta o indivíduo, o cotidiano, as relações e as expectativas para o futuro, explorando o que significa viver em tempos de guerra e incerteza.
Apesar desses muitos personagens, Anna é o coração da narrativa. Ela cresce observando as complexidades da vida durante o período tumultuado que antecede e segue a Segunda Guerra Mundial. Através de seus olhos, nós ganhamos uma perspectiva feminina sobre os eventos. Anna é profundamente afetada pelas circunstâncias, e suas experiências pessoais refletem as maiores turbulências políticas e sociais do momento.
Anna desenvolve um vínculo profundo com outro personagem, Cenzo Rena. Ele é um amigo da família de Anna e, apesar de suas diferenças de idade e experiência, ele representa um contraste com o mundo de Anna, trazendo consigo memórias e experiências da geração anterior. Sua relação com Anna, embora carregada de tensão e complicações, é um retrato das conexões humanas em meio às turbulências da guerra e do fascismo.
Através de uma prosa que é simultaneamente sutil e poderosa, TODOS OS NOSSOS ONTENS retrata com maestria as nuances das interações humanas, seja nos diálogos carregados de significados não ditos, seja nas descrições dos gestos e comportamentos dos personagens. O resultado é uma obra que, apesar de se situar em um período específico da história, possui uma atemporalidade que a torna relevante para leitores de qualquer época. Encontramos o testemunho de uma geração que viveu sob a sombra da guerra.
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