Analuz 29/09/2021
A não-sutileza dos detalhes
Pode-se dizer que, ao se consagrar como escritora, Lygia Fagundes Telles fez uma escolha ousada ao conciliar a vida jurídica (a autora é formada em Direito pela USP) com a sua produção literária. Aliás, ousadia também é uma boa palavra para definir esta obra, que toca em assuntos tão delicados para a época de publicação e que também retrata personagens femininas de maneira nada convencional.
Desde o início, seguimos as pistas que, aos poucos, o livro nos entrega: acompanhamos o drama de Laura, que sofre de transtornos mentais, e de sua filha Virgínia, que ainda é criança. Aprendemos com o decorrer dos capítulos que esta família passou por um enorme escândalo: Laura cometeu adultério e agora mora na casa daquele que teria sido seu amante. Ora, para um tempo em que sequer havia divórcio no Brasil, pensem em como isto não teria chocado a alta sociedade paulista da época (classe social à qual as duas pertenciam)!
E é através da infante Virgínia que descobrimos tudo isso, uma vez que ela mesma recebe estas informações no início da história. Aliás, o enredo não nos é revelado de cara, já que dependemos das ações e interpretações de Virgínia para que possamos, nós mesmos, entender o que acontece. E é claro que, para isso, Lygia também abusa de entrelinhas, que não estão lá apenas para enfeitar a história, mas que são repletas de significados.
Virgínia é a mais nova de três filhas e a única a morar com a mãe em outra casa, longe de todo o luxo do qual suas irmãs Bruna e Otávia desfrutam ao lado do pai, o renomado advogado Natércio. Dentre os amigos das irmãs, figuram o casal de irmãos Conrado e Letícia e o jovem Afonso. De cara, a garota sente que, por mais que se esforce para pertencer àquele grupo, nunca é aceita. Dentro de sua mente infantil, ela relaciona a sociedade formada por aqueles 5 com os anões de pedra que rodeiam a ciranda do jardim de Natércio. Inflexíveis como as estátuas, eles não abrem espaço para que Virgínia também pertença ao grupo. Então, cada vez mais, a garota se vê distante da moralista Bruna, da bela Otávia, do seu amado Conrado, da misteriosa Letícia e do falastrão Afonso.
Apesar de toda a audácia contida na obra, ela aparentemente caiu no gosto do público a ponto de "Ciranda de Pedra" ganhar duas adaptações televisivas em formato de novela. Quanto à primeira versão, não posso dizer muito, já que eu nem existia à época. Mas, em relação à produção de 2008, posso afirmar que não chega aos pés da profundidade que o livro traz! Fosse pelo horário de exibição ou apenas para conquistar uma gama maior de espectadores, o fato é que muitos dos temas polêmicos trazidos à tona no livro sequer foram pincelados nas telas. O que me faz crer, é claro, que "Ciranda de Pedra" é uma obra dificílima de se adaptar, uma vez que somos direcionados à história unicamente pelo ponto de vista da protagonista Virgínia e de suas percepções acerca do mundo que a cerca. Além disso, os temas trazidos aqui vão muito além da já mencionada representação feminina, abrangendo bissexualidade, impotência sexual e adultério feminino (veja bem, este é um livro publicado em 1954 e que retrata uma sociedade dos anos 40!).
A leitura desta obra foi uma experiência interessante e dúbia para mim. Apesar de eu gostar de como se deu o andamento da história e de ficar curiosa para saber o que aconteceria com Virgínia e os demais personagens, eu não gostei da protagonista, que é justamente a peça essencial para a condução do enredo! Mas é claro que isto é uma questão puramente pessoal e que não interferiu na minha classificação positiva do livro, no fim das contas.
No mais, "Ciranda de Pedra" é uma obra que eu recomendo para todos aqueles que viram a cara para a literatura nacional do século XX! Com uma escrita instigante, Lygia Fagundes Telles consegue nos transmitir os dramas e segredos escondidos pelo grupo, assim como podemos sentir a angústia de Virgínia, que mesmo rodeada se sente tão solitária em meio a esta ciranda de pedra...
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