Tamires 12/12/2021Ciranda de pedra, de Lygia Fagundes TellesÉ engraçado, mas eu terminei a leitura de Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles, em um estado de contemplação tal que não conseguia decidir se gostei ou não da história. Esse livro me acompanhou por semanas, tive ótimas reflexões a partir dele, então decidi que sim, gostei. Parti, então, em busca dos porquês.
Ciranda de Pedra me cativou mais pelo que não disse em sua narrativa. Lygia é mestra em criar imagens, camadas que nos levam a outro cenário da narrativa, mais subjetivo. Em vários momentos você lê sentimentos e sensações que já teve, mas jamais viu transcrito da forma como ela faz. Só lendo para entender.
Se você alguma vez já se sentiu deslocada; se esforçou para entrar em alguma roda e, mesmo dentro dela, sentiu-se fora, vai se identificar bastante com a protagonista desse romance, Virgínia. Ela é fruto de uma relação extraconjugal de sua mãe, que já no começo da história padece dos nervos.
Como em muitas narrativas que retratam os círculos sociais burgueses, nada é muito honesto em Ciranda de Pedra. A exceção aqui é a personagem principal, a qual temos livre acesso também aos pensamentos. No mais, tudo é bem colocado debaixo dos tapetes. Virgínia era a sujeira que teimava em desarmonizar a suposta paz daquele que poderia ser o seu lar: a casa do pai que não era, de fato, o pai.
Sim, porque logo no começo a autora nos mostra o descompasso dessa ciranda: Laura, a convalescente mãe de Virgínia vive em uma casa com esta, que é sua filha mais nova, e Daniel, a quem Virgínia considera como tio. Em outra casa, mais bela e rica, no campo, com anões de jardim que representam a materialização da ciranda de pedra, vive Natércio, ex marido de Laura, com as outras duas filhas desse extinto casamento, Bruna e Otávia. As filhas legítimas comandam a ciranda da qual Virgínia sonha em fazer parte desde criança. Soma-se à roda Afonso, Letícia e Conrado, este último grande amor de Virgínia.
Ciranda de Pedra é dividido em duas partes. Na primeira, Virgínia é ainda uma criança e, conforme dito acima, vive entre a casa da mãe e o sonho de pertencer ao lar de Natércio. Já na segunda, ela é uma jovem adulta recém-saída do internato de freiras onde passou todo o seu fim de infância e a adolescência. Mesmo crescida e estudada, ela ainda está crua sobre relacionamentos. Assim como sugere seu próprio nome.
Dito isso, sabe a sensação de estar lendo uma novela do Manoel Carlos? Gente branca, rica, esnobe, uma mulher enlouquecida (quem sabe por um amor proibido?), a figura bem marcada dos serviçais, incluindo uma mulher negra etc. O romance é bem nesse estilo, não posso deixar de pontuar. Mas a trama flutua tão bem entre a realidade blassé dos personagens e a ebulição dos pensamentos de Virgínia, que eu não pude parar de ler, ainda que a sensação de ‘credo, que bando de gente chata!’, rondasse meus pensamentos. Lygia Fagundes Telles usa lindamente a técnica do fluxo de consciência neste romance. Não por acaso, nos textos complementares desta edição há uma aspa de Paulo Rónai relembrando que os nomes de Katherine Mansfield e Virginia Woolf foram lembrados ao “situar Ciranda de Pedra“.
Na segunda parte do romance, Virgínia está se descobrindo, em alguns momentos parece um vulcão prestes a explodir. E, mais uma vez, é no fluxo de consciência que está a força da história. Virgínia é o ponto fora da curva, o quadro vivo que mostra o desajuste da família por trás da cortina da boa aparência. Gostei de como Lygia falou sem falar sobre amores negados. Alguns não correspondidos, outros superados em nome dos anseios pelo bom convívio social.
“Ouça, VIrgínia, é preciso amar o inútil. Criar pombos sem pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher as rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas.” (p. 135)
“não fique assim com essa mentalidade de donzela folhetinesca, não separe com tanta precisão os herois dos vilões, cada qual de um lado, tudo muito bonitinho como nas experiências de química. Não há gente completamente boa nem gente completamente má, está tudo misturado e a separação é impossível. O mal está no próprio gênero humano, ninguém presta. Às vezes melhora. Mas passa.” (p. 148)
Ciranda de Pedra foi publicado originalmente em 1954. Pela época e pelo foco da narrativa eu apenas revirei os olhos nas passagens impregnadas de racismo em relação à empregada negra da casa de Laura e Daniel, Luciana, lá da primeira parte do romance. Após ler o livro inteiro dei por mim que basear toda a crítica ao livro a esses trechos da história seria muito raso de minha parte. É chato, horroroso, dá uma vontadezinha de abandonar, mas, sejamos francos: o Brasil de 2021 enoja mais quando o assunto é racismo. Quem é que nunca ouviu (ou leu) sobre o ridículo conceito de racismo reverso? Quem insiste na falácia do racismo reverso considera que exista um racismo certo, segundo explica Silvio de Almeida.
“— Escute, Luciana, você acha mesmo que se a gente é ruim nesta vida numa outra vida a gente nasce bicho? Tenho medo de nascer cobra.
— Você já é cobra — disse Luciana com brandura.
— E você é mulata — retorquiu Virgínia no mesmo tom.
— E gosta dele, por isso faz de tudo para parecer branca.” (p. 17)
“Meu pai era preto e minha mãe era branca. Fiz de tudo para tirar meu pai de mim, tudo. E não adiantou, ele está nos meus cabelos, na minha pele, no meu sangue… Essas coisas a gente tem que aceitar.” (p. 88)
E tem mais, tem a “gorda e afável Luela”, que “era prestativa, vivia se oferendo para auxiliar em tudo, mas não tinha habilidade para nada” (p. 99). Penso que a autora apenas reproduziu um comportamento normal da época e classe retratada. Em suma, vem na garganta aquele gostinho de novela das 8 com trilha sonora de MPB, mas logo passa. O livro vale a pena mesmo assim. No fim, Virgínia tem uma atitude que me surpreendeu, e foi uma das poucas surpresas que eu tive com a narrativa (no quesito reviravolta). Ela diz: “já que é preciso aceitar a vida, que seja então corajosamente”. E a Ciranda não poderia ter terminado de forma melhor.
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