helenavgi 25/11/2023
O silêncio feminino, ou a female rage.
Toda arte depende de um fator essencial: o não dito, o psicologismo oculto, aquele que o comportamento social disfarça, que é sobreposto sobre os fatos materiais. Essa talvez seja uma das maiores marcas do artista, criar um efeito de tal profundidade que dê margem a diversos conceitos, ideias e interpretações. Essa ausência do dito é a força motriz da prosa de Katherine Mansfield.
Um elemento que se destaca muito é o estilo de sua escrita. Para Katherine, o estilo era mais importante do que beleza, e por isso, treinava constantemente a técnica. Obsessivamente. Até ter o tom, o comprimento e o som perfeitos, tudo cuidadosamente e sistematicamente executado com grande apuro.
Sua escrita é um pouco similar à de outra deusa de nossa literatura, Lygia Fagundes Telles. Apesar de ambas serem eméritas em certos aspectos, não seria exagero afirmar que a sutileza, o olhar de gato, a simplicidade e ao mesmo tempo, a potência de Katherine se reflete na de Lygia como as várias faces de um espelho.
Além de Lygia, a escrita de Katherine trouxe à tona a admiração de outras escritoras muito especias: Virginia Woolf e Clarice Lispector. Katherine manteve uma relação conflituosa com a primeira, lembrando ainda a amizade de Lila e Lenú - com grande afeto e competitividade das duas partes -, da tetralogia de Elena Ferrante. Entretanto, ambas mantiveram uma mútua conexão literária, e isso refletiu em suas respectivas obras.
Ao contrário de Woolf, sua influência sobre Clarice foi à distância, tendo em vista que Mansfield morreu - jovem, aos 34 anos - pouco depois de Lispector nascer. Mas isso não foi um problema. Clarice conta que, aos quinze anos, logo após ganhar seu primeiro dinheiro fruto de seu trabalho, entrou em uma livraria:
[...] Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era anônima, sendo, ao contrário, considerada uma das melhores escritoras de sua época: Katherine Mansfield. (LISPECTOR, A Descoberta do Mundo)
As protagonistas dos 5 contos (em ordem, Êxtase, A aula de canto, A festa no jardim, A vida de Ma Parker e As filhas do falecido coronel) são mulheres comuns, aparentemente simples, mas por dentro movidas por uma forte onda de emoções, desejo, tristeza, angústia, liberdade, que sentem, e que o fazem intensamente. Ainda que as personagens sejam apresentadas em oposição, as divergências ocorrem num só e mesmo plano, nas voltas entre conflitos existenciais e a essência feminina de ver o mundo.
A tendência para as emoções é prova evidente não só do intenso desejo de realidade característico da era atual, do anseio de estar bem informado acerca da condição humana, mas também daquela recusa em aceitar os propósitos artísticos do século XIX, que se expressa no abandono da história e do protagonista individual. Essa disposição se intensifica principalmente se for parar para pensar no determinismo social voltado às mulheres de sua época, onde suas únicas designações eram definidas por seus relacionamentos familiares.
Êxtase, considerada a obra mais "feminina" de Katherine, traz à tona um questionamento já no nome. O que seria a êxtase? A ideia pode ser caracterizada como uma incontida sensação que invade o corpo, uma felicidade desgovernada, que transborda do prazer de perder-se:
Embora Bertha Young tivesse 30 anos, ela ainda vivia momentos em que sentia vontade de correr em vez de caminhar, de dançar pequenas coreografias subindo e descendo a calçada, de girar um aro, de jogar coisas pelos ares só para pegar de volta ou de ficar imóvel e rir de nada, simplesmente de coisa nenhuma. (MANSFIELD, pág. 15)
Como podemos intuir, o eu feminino construído por Mansfield é levado a indagar acerca de sua liberdade, de sua vontade de se expressar verdadeiramente sem parecer uma afronta a ordem pré-estabelecida socialmente, sendo ela uma adulta. Bertha é uma personagem que eu pessoalmente gostei muito, pois acredito que ela representa todas as mulheres dessa coletânea, que sentem cada pequena coisa com paixão ou desilusão, mas nunca indiferença.
Outro recurso usado na prosa de Katherine é o encontro com o fatídico. A morte está presente em 3 dos 5 contos reunidos, e esse encontro se dá com o desejo de um grito de mulher. Não literalmente, mas a ideia do grito, é interessante perceber, se dá como a libertação das amarras a qual estão inseridas, o que lembra um termo muito recorrente da era atual, a tal da "female rage", que, em tradução livre, seria "raiva feminina". Entretanto, na literatura de Mansfield, não é exatamente raiva, e sim uma tristeza profunda, sem outro caminho senão a resignação aos fatos, sem dissolver a ordem à qual estão estavelmente inseridas.
Um exemplo é o conto "A vida de Ma Parker", onde a protagonista se vê diante da morte de seu único neto, depois de levar uma vida de tormento e tristezas, e não vê outro jeito senão chorar todos os anos de sofrimento. O que é interessante perceber nesse conto é que ela não derrama uma única lágrima. Esse silêncio, e não apenas o melancólico, é vital na construção de linguagem de Katherine, como pode-se conferir nos seguintes exemplos:
Ela queria apenas falar com ele por um momento. Não podia gritar de forma insensata: "Não é um dia magnífico?". (MANSFIELD, pág. 19)
? Não posso falar o que ia dizer, Jug, porque eu esqueci o que era? Era isso que eu ia dizer. (MANSFIELD, pág. 180)
Outras pessoas podem não gostar dos contos, mas eu, uma menina que é sensível demais a tudo, não pude deixar de me deslumbrar com a beleza da literatura de Katherine Mansfield. Depois de lê-los, tenho que concordar com Clarice: ela foi uma das melhores escritoras de sua época.