Gramatura Alta 12/10/2023
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Acidade do Cairo mudou radicalmente quando o místico e inventor sudanês al-Jahiz abriu um buraco no Káf, o reino mágico de onde libertou os djinns – os gênios. Quer tenha sido por curiosidade, brincadeira ou maldade, não se sabe o que o fez trazer os djinns para o mundo humano: antes que pudesse esclarecer, al-Jahiz desapareceu, levando consigo seus equipamentos. Há quem diga que ele viajou por diferentes universos, espalhando caos pelo caminho, mas qualquer hipótese não passa de mera especulação.
A realidade que a agente Fatma conhece foi transformada pela magia e pelo sobrenatural. Quarenta anos depois do feito de al-Jahiz, os djinns e suas monumentais criações fizeram do Egito uma das maiores potências do planeta e, do Cairo, seu coração. Fatma está no auge da carreira e seu trabalho é reconhecido como um dos melhores do Ministério da Alquimia, Encantamentos e Entidades Sobrenaturais. Portanto, é a agente mais preparada para investigar um crime atípico, cometido por um homem mascarado que afirma ser o próprio Al-Jahiz. Ele alega ter a capacidade de controlar os djinns e o poder de mudar a realidade mais uma vez.
Em sua jornada para desvendar os mistérios e garantir a segurança do Egito e do mundo, Fatma contará com a ajuda da nova parceira de Ministério, Hadia, jovem agente que tem grande admiração pela chefe, e Siti, uma núbia devota de Sekhmet que, mesmo envolvida em um relacionamento com Fatma, ainda parece esconder segredos.
MESTRE DOS DJINNS é uma fantasia steampunk que se passa no ano de 1912, onde magia, tecnologia e seres sobrenaturais dividem espaço entre os humanos. A narrativa combina elementos de detetive em uma trama que é ao mesmo tempo um quebra-cabeça de assassinatos que precisa ser resolvido e uma exploração de temas como identidade, colonialismo e relações políticas e sociais moldadas pela presença do sobrenatural, com uma abordagem progressiva em relação à diversidade e às críticas ao racismo e colonialismo.
O Cairo retratado em MESTRE DOS DJINNS é uma metrópole global onde várias culturas convergem. No entanto, ao contrário da história real, o Egito nunca foi colonizado, permitindo ao país e à cidade uma autonomia e um crescimento independentes. Essa decisão narrativa por si só é uma crítica ao colonialismo e seus efeitos prejudiciais. Além dessa abordagem, os personagens do livro são diversificados em termos de gênero, sexualidade, raça e origem cultural. A própria protagonista, Fatma, é uma mulher forte e independente, com um relacionamento com outra mulher, Siti, que desafia as normas de gênero de sua época.
Embora o Egito de Clark nunca tenha sido colonizado, as tensões e dinâmicas do colonialismo ainda são palpáveis. O livro examina as consequências do poder e influência estrangeira e como diferentes grupos lutam para manter ou redefinir sua identidade em face dessas pressões. O autor ainda oferece vozes a personagens que tradicionalmente seriam marginalizados ou silenciados. Seja através da agência de personagens femininas, da presença de minorias ou da interação entre humanos e seres sobrenaturais, o livro destaca a importância do diálogo e da compreensão entre diferentes grupos. A tudo isso em um gênero que é único, o steampunk.
Para quem tem pouca familiaridade, o steampunk é um subgênero da ficção científica e da fantasia que combina a estética da era vitoriana com o futurismo retrô. Ele é facilmente reconhecível por sua estética distintiva. Engrenagens, relógios, dirigíveis, óculos de aviador e vestimentas vitorianas são elementos comuns. As invenções tecnológicas no universo steampunk, embora avançadas, são geralmente alimentadas por vapor, em vez de eletricidade ou outros meios modernos. MESTRE DOS DJINNS usa uma variação do gênero ao enfatizar mais o aspecto fantástico, introduzindo magia e sobrenaturais, e aprofunda uma crítica intrínseca ao estilo steampunk sobre os malefícios do imperialismo, racismo e desigualdade social, usando o gênero como uma forma de comentário social.
MESTRE DOS DJINNS acompanha três personagens principais, todas bastante distintas e cativantes. Fatma el-Sha’arawi não faz sua estréia nesta obra. Ela é figura recorrente de outras histórias do autor, como A DEAD DJINN IN CAIRO e THE HAUNTING OF TRAM CAR 015, ambas sem publicação no Brasil. Isso pode causar uma estranheza no leitor ao iniciar a leitura, porque há conversas entre Fatma e Siri que remetem a aventuras passadas. Então fica a sensação de estar lendo a sequência de alguma outra obra. Entretanto é apenas uma sensação, não compromete em absolutamente nada o prazer ou a compreensão da leitura.
Fatma é uma investigadora habilidosa, astuta e tem um olhar atento para detalhes. Ela possui um senso de moda distinto que se torna sua marca durante a leitura. Ela frequentemente veste ternos ocidentais, que são tanto uma afirmação de estilo quanto um desafio às normas tradicionais de gênero de sua sociedade, um símbolo de sua independência e confiança. Ela é treinada para lidar com o sobrenatural, desde decifrar encantamentos antigos até lidar com seres míticos como os djinns. Sua limitação humana rende vários momentos de tensão, uma vez que ela confronta gênios com poderes capazes de realizar qualquer feito. Nos confrontos, diante de sua limitação física, Fatma usa da inteligência e astúcia para conseguir vencer seus oponentes, o que demonstra um domínio profundo do autor sobre a oratória e o convencimento. Fatma me conquistou e se tornou uma das personagens femininas mais memoráveis e carismáticas das fantasias que conheço. Ela não apenas desafia as convenções de sua sociedade fictícia, o que já é um feito que conquista, mas também é uma heroína para torcer e admirar.
A segunda personagem é Hadia, uma jovem agente que se junta ao Ministério da Alquimia, Encantamentos e Entidades Sobrenaturais como parceira de Fatma. Em contraste com a confiança de Fatma, Hadia é mais reservada e metódica. Ela é inteligente, observadora e, apesar de sua inexperiência relativa, mostra determinação, resiliência e um forte comprometimento com seu trabalho. A relação se inicia com o clichê do atrito da agente experiente que prefere trabalhar sozinha, sem ter uma novata atrapalhando. Mas, felizmente, esse conflito dura apenas alguns poucos parágrafos, que não formam nem uma página. À medida que a história avança, elas desenvolvem um respeito mútuo e uma amizade profunda. Hadia não é apenas a parceira de Fatma, ela tem seu próprio conjunto de experiências e antecedentes que a moldam como agente e como personagem. Ela traz uma perspectiva diferente sobre o Ministério, e sua perspectiva muitas vezes ajuda a lançar luz sobre aspectos da investigação, dividindo a narrativa com Fatma e não sendo apenas sua sombra.
E a terceira personagem é a mais intensa e misteriosa, Siri. Ela é a namorada de Fatma e desempenha um papel importante em toda a narrativa, quase sempre de maneira indireta e surpreendente. Isso porque ela tem ações que, inicialmente, parecem não ter explicações, como ela entrar em lugares de difícil acesso, aparecer sem ser notada, demonstrar habilidades físicas superiores e uma personalidade forte, até mesmo dominante. Há vários trechos onde Siri e Fatma compartilham momentos íntimos, românticos, que demonstram o quando as duas personagens estão interligadas emocionalmente e fisicamente. Siri também possui um espírito livre e uma abordagem mais despreocupada da vida, contrastando com a seriedade de Fatma em muitas situações, e desempenha um papel de apoio incondicional às ações de Fatma diante de suas investigações. Mas o papel mais significado da dinâmica entre as duas personagens, é a representação LGBTQ+ e a exploração de temas de amor, aceitação e a interseção entre o humano e o mágico, isso porque os segredos de Siri são revelados na metade do livro, e tudo é transportado para um novo nível de percepção.
O enredo de MESTRE DOS DJINNS entrelaça mistério e política, criando uma trama que é mais do que apenas uma investigação de assassinatos. A série de homicídios que Fatma, Hadia e Siri se propõem a resolver não é um caso isolado; o crime aumenta as tensões causadas por membros de uma seita religiosa que idolatra Al-Jahiz, o homem que transformou o mundo ao abrir os portais para o mágico, e são apenas a ponta do iceberg de um emaranhado de disputas por poder e controle. O autor utiliza este mistério como uma lente para examinar questões de identidade, colonialismo, e as implicações de um mundo onde o sobrenatural é comum. A investigação das mulheres torna-se, assim, não apenas um esforço para resolver um crime, mas também uma profunda exploração da intersecção entre poder, magia e identidade numa sociedade em rápida transformação entre os poderes.
MESTRE DOS DJINNS me surpreendeu e se tornou uma das minhas fantasias preferidas, a ponto de me fazer lamentar não poder ler as outras obras do autor e acompanhar mais aventuras de Fatma. O autor criou um universo steampunk alternativo, com Cairo como o lugar central, repleto de maravilhas e mistérios. Através de três personagens carismáticas e uma trama envolvente que combina intriga, magia e comentário social perspicaz, a obra tem todos os ingredientes para permanecer na memória dos leitores muito depois da última página ser virada. Pelo menos, para mim, com certeza ficará.
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