Vanessa.Benko 09/07/2024
Como suas mãos memorizaram dessa forma todas essas expressões de ternura, sendo cada uma delas, sem nunca convocar o verbo, capaz de falar com ele tão sutilmente por dentro?
Imagine um encontro improvável que desafia as fronteiras entre arte, ciência e espiritualidade. É exatamente isso que Anne Sibran nos oferece em "O Primeiro Sonho do Mundo", uma narrativa onde três vidas se entrelaçam de maneira poética e profundamente reflexiva. Paul Cézanne, o célebre pintor; Barthélemy, um oftalmologista genial; e Kitsidano, uma jovem ameríndia cega, são os protagonistas dessa trama que nos convida a reconsiderar o próprio conceito de visão.
Cézanne, já no auge de sua arte, está sempre à procura de um novo olhar, algo primitivo e puro. Ele busca captar a essência do mundo através de suas telas. Barthélemy, por sua vez, cresceu em meio a cegos, dedicando sua vida ao estudo do olho humano. Sua habilidade em curar cataratas é tão admirável quanto sua jornada de exílio e redescoberta na América do Norte. Kitsidano, que vê além do visível, personifica uma percepção intuitiva e espiritual, se transpondo para além da dependência visual e aguçando seus sentidos.
A escrita de Sibran é uma sinfonia de sensações, onde a sinestesia nos transporta para os campos de Cézanne, os olhos curiosos de Barthélemy e a visão interna de Kitsidano. Através de descrições vívidas e ricas, somos convidados a experimentar a beleza e a profundidade do mundo de maneiras novas e inesperadas. A personificação é um recurso constante e habilmente aplicado, dando vida não apenas aos personagens, m as também a todos os componentes da natureza (inclusive as cores) e ao próprio ato de ver e sentir.
Cada ser é único, e cada visão também. Na obra o verbo "ver" incorpora o significado de tantos outros verbos. Através de diferentes planos sensoriais, somos levados a refletir sobre como percebemos o mundo.
A impotência humana diante do poder da natureza é um tema central na narrativa. A natureza nos encanta e absorve, oferecendo diferentes definições de beleza. Essa interação com a natureza, que é tão essencial e indissociável de nossa existência, nos faz reconsiderar nossa própria vulnerabilidade e admiração pelo mundo natural.
A correlação entre o encantamento de ver algo pela primeira vez e a sensação de sentir a visão, ao invés de apenas ser ensinado sobre algo concreto, é explorada de forma poética.
Definir o que é profundidade, seja na ciência ou na arte, é um desafio. A profundidade não é apenas uma questão de técnica, mas de percepção. É o pano de fundo do mundo, o que nos dá a base para nossa consciência de vida. O que sonhamos é o que define nossa realidade, e essa ideia é brilhantemente explorada através das experiências de Cézanne, Barthélemy e Kitsidano.
A pintura é apresentada como uma forma de escrita, uma tradução visual do mundo. Replicar algo é uma forma de materializar nossa perspectiva, de compartilhar nossa visão única com os outros.
Também podemos refletir sobre os perigos dos estímulos visuais artificiais. Vivemos em um mundo saturado de imagens que, em vez de nos conectar à beleza natural, muitas vezes nos cegam para ela. A narrativa nos convida a desacelerar e a descobrir novas fontes de luz para nossos olhos se acomodarem.
A profundidade deste romance reside na sua capacidade de nos fazer sonhar com realidades diferentes e nos desafiar a questionar nossas próprias percepções. "O Primeiro Sonho do Mundo" é uma leitura que ecoa na mente e no coração, um convite a explorar a beleza e a complexidade da visão humana e do mundo ao nosso redor. Anne Sibran, com sua prosa lírica e envolvente, nos proporciona uma experiência literária inesquecível.