Alexandre Kovacs / Mundo de K 21/07/2024
Tiago Feijó - Breve inventário de pequenas solidões
Editora penalux - 100 Páginas - Concepção de capa: Dáblio Jotta - Lançamento: 2024.
Os contos reunidos nesta coletânea de Tiago Feijó têm como inspiração as diferentes formas de solidão, este sentimento que, segundo a filosofia existencial de Martin Heidegger, "é condição original de todo ser humano, uma vez que cada um de nós é só no mundo". Na literatura é um tema recorrente, como cita o autor na epígrafe de Clarice Lispector: "[...] que minha solidão me sirva de companhia [...] que eu tenha a coragem de me enfrentar." O fato é que hoje o isolamento está cada vez mais presente e as redes sociais, criadas pretensamente com o objetivo de aproximar as pessoas, atingiram resultado oposto na prática porque vivemos em um mundo globalizado, no qual o direito à privacidade acabou e, contudo, permanecemos cada vez mais solitários.
Apesar da solidão ser uma característica essencialmente humana, a criatividade de Tiago Feijó nos apresenta alguns animais exercendo o papel de protagonistas, como no conto "O destino de Beethoven" que abre o livro e narra a saga de um pássaro, nascido livre na floresta, em um ninho localizado na forquilha de um alto galho de embaúba, covardemente aprisionado por um homem, "este bicho de estranhos membros e força descomunal"; pode existir uma desconexão mais terrível com a realidade do que atravessar a vida em uma gaiola? Outro exemplo da convivência entre pessoas e animais é abordado em "Solenemente", uma triste história urbana que mostra como a lealdade dos cães pode amenizar o final de vida solitário de um homem.
"Beethoven atravessou assustadiço e desconfiado os primeiros dias do seu cativeiro. Agitava-se muito a cada aproximação do homem, saltando desesperado de poleiro em poleiro, chocando-se por vezes contra o gradil da gaiola por não saber ainda como domar a afobação de suas asas, habituadas aos ilimitados espaços da floresta. Aos poucos, por observação e experiência, compreendeu que sua vida não estava em risco, que de certa forma podia considerar-se até mesmo seguro. [...] Compreendeu também, por intuição e consequência, que sua vida jamais seria outra, que passaria o resto de seus dias ali, trancafiado e alimentado, saltando de poleiro em poleiro, debicando as frutas e descascando o alpiste que lhe davam. Compreendeu que jamais tornaria a sobrevoar a amplidão dos ares, que jamais voltaria a pousar sobre as copas frondosas dos arvoredos. E, neste dia, no dia em que entendeu tudo isso, Beethoven chorou, chorou seu choro de pássaro, seu canto de morte, que pelos ouvidos do homem, por terrível ironia, ecoava tal e qual uma sinfonia singular e harmoniosa. Foi então que o passarinheiro o batizou pelo nome que teve e pelo qual o chamamos: Beethoven." (pp. 11-12) - Trecho do conto O destino de Beethoven
Neste inventário de solidões, o autor aborda também a capacidade de pessoas próximas se isolarem por conta de conflitos familiares, como é o caso do protagonista de "O Telefonema" que precisa avisar ao irmão sobre a morte da mãe mas, depois de muitos anos afastados, nem ao menos sabe o seu número de telefone. Um dos melhores contos do livro, "Ele é só um menino", narra um momento decisivo no cotidiano simples de um entregador de pizzas quando recebe uma proposta que pode mudar sua vida, um servicinho simples, só entregar um embrulho suspeito. E, neste caso, Tiago Feijó nos mostra como a exclusão social que condena as pessoas a uma existência miserável e sem oportunidades pode representar também um tipo de solidão; e das piores.
"Oitenta e três. Oitenta e três. Oitenta e três. Ali, apartamento oitenta e três. Meto o dedo na campainha. Espero. O fundo da pizza queima a palma da minha mão. Suporto. É só uma questão de costume. O cara que me abre a porta é ligeir, pega a pizza e me dá as costas antes mesmo d'eu confirmar o pedido. Dou uma soprada forte na mão pra aliviar a dor e ouço o cara falar algo lá dentro, acho que me convidando pra entrar. Na dúvida, aguardo, como sempre, em pé diante da porta. [...] Uma música enche o apartamento inteiro, baixinha, comportada. Conheço ela, já ouvi ela antes, até gosto dela. O cantor está aqui, na ponta-da-língua, mas o nome não vem. É americano ou inglês, sei lá [...] Nisso o cara me pergunta se eu fumo. Distraído, de butuca na mesa dele, respondo que sim. E ele me pergunta o quê. O quê o quê, devolvo a pergunta sem entender. Aí ele me põe no esclarecimento perguntando o que eu fumo. Esclarecido, respondo que fumo cigarro, deixando flutuar no ar os três pontinhos das reticências porque desconfio que é melhor evitar certas sinceridades. [...] Dou uma tragada firme, funda, e solto a fumaça no vento. Gosto disso. Ao dar as costas pra cidade, topo com uma televisão imensa, na parede oposta da sala, e dentro dela o Mick Jagger rebolando muito, como uma mulata despirocada no carnaval. Mick Jagger, é esse o nome, estava aqui na ponta-da-língua." (pp. 25-27) - Trecho do conto Ele é só um menino
Sobre o autor: Tiago Feijó é professor e escritor. Nasceu em Fortaleza, mas foi criado em Guaratinguetá, interior de São Paulo. Formou-se em Letras Clássicas pela Unesp. Venceu o Prêmio Ideal Clube de Literatura 2014. É autor dos livros "Insolitudes" (7Letras, 2015), "Diário da casa arruinada" (Penalux, 2017), livro finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e "Doze dias" (Penalux, 2022), livro finalista do Prêmio Leya 2021 e vencedor do Prêmio Manuel Teixeira Gomes 2021. Tem textos publicados em diversas antologias, revistas e blogs de literatura.