Flávia Menezes 28/02/2024
ETA MUNDO VELHO SEM PORTEIRA!
?O Continente ? volume 1? é o primeiro de sete volumes que compõe a trilogia de ?O Tempo e o Vento?, escrita por esse gaúcho que com a sua prosa simples e de fácil leitura, tornou-se um dos escritores mais populares da literatura brasileira, chamado Érico Lopes Veríssimo, e que por 13 anos de sua vida se dedicou a compor esse verdadeiro monumento literário capaz de fascinar leitores de diferentes gerações.
Atravessando um período de 200 anos, nestes volumes compostos por ?O Continente, volumes 1 e 2? (1949), ?O Retrato, volumes 1 e 2? (1951) e ?O Arquipélago, volumes 1, 2 e 3? (1962), somos transportados para a cidade fictícia de Santa Fé, nesta mescla de ficção com romance histórico onde a família Terra-Cambará tem seu início, e onde podemos acompanhar fatos e personagens reais que foram fundamentais na formação da identidade cultural e geográfica do Rio Grande do Sul, bem como da sua projeção política no país, enquanto o estado ia tomando forma entre a colônia, o império e a república.
Para escrever ?O Continente?, Érico teve como base de pesquisa, livros históricos e memórias da própria família, cujas raízes estiveram fixadas em Cruz Alta, e o resultado é esse enredo repleto de personagens únicos, que dão vida a essa narrativa que definiu o modo de ser do gaúcho, com seus pormenores de usos e costumes locais, criando até mesmo a sua própria mitologia.
Levando em conta o tempo cronológico de ?O Continente, volume 1?, estamos em 1745, momento em que ocorrem as missões jesuítas, e quando uma índia é estuprada por bandeirantes, trazendo ao mundo um menino mestiço que o padre Alonzo batiza de Pedro, aquele de quem a família Terra irá descender.
Já adulto, Pedro Missioneiro conhece Ana Terra, filha de uma família vinda de São Paulo, e do relacionamento proibido deles nasce Pedro Terra. Marcados por um ciclo de violência e mortes, mãe e filho serão obrigados a fugir e se instalar em Santa Fé, cidade esta que será abrigo dos protagonistas desta história.
Neste espaço de tempo de 91 anos, a todo instante esses personagens marcantes passeiam em tempos psicológicos, viajando entre o passado e o presente, recordando a força daqueles que vieram antes deles e lhes deram a vida, ou rememorando momentos em que a liberdade era sentida no galope de um cavalo, ou na ponta cortante da espada, ou mesmo na velocidade de uma bala que sai do cano de uma arma de fogo.
Além dessa estrutura romanesca, narrada em terceira pessoa, e que é um verdadeiro deleite do qual não queremos desgrudar os olhos um só minuto, esse autor e poeta chamado Érico Veríssimo ainda nos presenteia com personagens extraordinários, que com a sua intensidade emocional vão nos contando sobre seus dramas pessoais mais íntimos.
A primeira protagonista a quem somos apresentados é uma mulher de fibra e de muita coragem, que amou apenas um homem a sua vida toda, chamada Ana Terra. Com a sua morte, o bastão do protagonismo é passado para a sua neta, Bibiana Terra, em cujas veias corre o mesmo sangue da mulher forte que um dia a sua avó foi.
E é essa garra que faz com que Bibiana enfrente o pai para se casar com o seu único e grande amor, o Capitão Rodrigo, um herói de guerra encantador (porém muito mulherengo), que com muita insistência (e algumas serestas) acaba por ganhar o seu coração, iniciando assim a família Terra-Cambará.
Tenho que confessar que é impossível pensar no Capitão Rodrigo sem que logo venha à mente a imagem do ator Thiago Lacerda, que o interpretou na adaptação para filme dirigida por Jayme Monjardim, e que estreou em setembro de 2013.
Aliás, ler esse livro (para mim!) teve esse gostinho das novelas e minisséries globais do passado, repletas dessas tramas românticas que nos deixava com os olhos grudados na tela da tevê, enquanto o coração pulsava desenfreado, e um suspiro escapava dos lábios a cada instante em que o ?mocinho? conquistava a ?mocinha?.
De fato, na parte inicial em que acompanhamos a quinta geração da família Terra-Cambará, e Alice está sofrendo as dores do parto da filha que tem com Licurgo Cambará, neto de Bibiana, as imagens que me vinham à mente era da Patrícia Pillar e do Tony Ramos, cujos personagens enfrentaram o mesmo drama vivido aqui, na novela ?Cabocla?, que foi ao ar em 2004.
Mas quer saber... ler ?O Continente? é realmente experimentar desse sabor nostálgico das novelas do passado, ao mesmo tempo em que seus personagens nos parecem tão conhecidos, porque acabam por nos lembrar alguém da nossa própria família.
Eu preciso confessar aqui, que algumas frases ditas, eu ouvi muitas vezes durante a minha infância e adolescência, como quando Bibiana ouvia a mãe lhe dizer: ?Primeiro a obrigação, depois a diversão!? Quantas vezes eu também ouvi isso!
A verdade é que mesmo que a minha família não tenha suas origens no sul do país, e nem a cultura gaúcha marque a minha árvore genealógica, eu confesso que ainda assim, muito dessa família Terra-Cambará me lembrou muito da minha família, dos Inocencios (aliás, tem até um Inocêncio logo no início do romance). Especialmente no que se refere à garra de mulheres como Ana Terra e Bibiana, que por conta de tragédias da vida, são obrigadas a criar os filhos sozinhas. São tantas as mulheres da minha família que me deram o mesmo exemplo!
Sem contar toda a simplicidade de uma vida longe da cidade grande, e da fé e do temor a Deus, de pessoas que foram educadas nos preceitos do catolicismo. Especialmente vivenciando agora o tempo da quaresma, muitos momentos da Igreja Católica que são narrados aqui, eram para mim tão vívidos, que é como se eu estivesse lá, ao lado deles.
Uma coisa que aprendi a duras penas neste romance, é que assim como na vida real, nenhum personagem ?ficará pra semente?. E cada partida, era um momento solene de perda, em que eu sentia aquela dor por vê-los indo tão cedo. Porque de fato, acabei me afeiçoando tanto a cada um deles, que foi difícil demais vê-los partir!
Mas apesar de triste, fica em nós aquele sentimento de que suas raízes permanecerão, porque através deles novas vidas vão surgindo, e de fato elas não são menos importantes do que as daqueles que se foram. Essas novas vidas, desses novos personagens carregam o legado daqueles que se foram com muito respeito, fazendo com que a sua memória seja para sempre honrada por cada um daqueles que ficam. E esse é um dos movimentos mais belos da transitoriedade da vida, seja ela real ou fictícia, em que o velho vai dando lugar ao novo, e por ele e através dele, vai se perpetuando.
É... e eu que nunca fui muito amigável com a literatura brasileira, e nem jamais havia me sentido conectada a alguma obra de um autor nacional, fui plenamente arrebatada pela escrita do Érico. E por isso mesmo preciso confessar que eu fico até feliz por essa ser uma saga tão longa assim. Porque eu não estou nenhum um pouco pronta para me separar dos Terra-Cambará tão cedo!
?? Nossa mente, Alonzo, é como uma grande e misteriosa casa, cheia de corredores, alçapões, portas falsas, quartos secretos de todo o tamanho, uns bem, outros mal iluminados. No fundo desse casarão existe um cubículo, o mais secreto de todos, onde estão fechados nossos pensamentos mais íntimos, nossos mais tenebrosos segredos, nossas lembranças mais temidas. Quando estamos acordados usamos apenas as salas principais, as que têm janelas para fora. Mas quando dormimos, o diabo nos entra na cabeça e vai exatamente abrir o cubículo misterioso para que as lembranças secretas saiam a assombrar o resto da casa. O demônio não dorme. E é quando nossa consciência adormece que ele aproveita para agir.?