spoiler visualizarKatharina.Pedrosa 04/09/2024
“Traição é coisa de Sinhô e Sinhá”
Este romance histórico, ambientado em 1732, alterna entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais, apresentando-nos Vitória, uma mulher negra alforriada e transsexual. Ela mantém um relacionamento com Felipe Gama, um jovem branco, herdeiro empático com as dores dos negros, mas cúmplice dos interesses da sua classe, prestes a se casar com Sianinha Muniz em uma sociedade onde religião e política se entrelaçam sob a vigilância de Frei Alexandre, um inquisidor que reforça as normas morais da época. As famílias Gama e Muniz, no entanto, se revelam distantes das expectativas sociais impostas.
Vitória é uma figura enigmática, que desperta medo e curiosidade. Como vidente e curandeira, é requisitada para resolver mistérios. Quando a família Gama começa a receber cartas anônimas ameaçando expor seus segredos, Antônio Gama, pai de Felipe, contrata Vitória para descobrir o autor. É interessante observar como todas as camadas sociais a procuram, desde senhores e sinhás até escravizados, em busca de seus trabalhos espirituais.
Foi a primeira vez que encontrei uma protagonista transexual em um romance histórico. Considerando que pessoas LGBT+ sempre existiram em todas as épocas, a representatividade é essencial. Vitória é uma personagem confortável em sua própria pele, subversiva e que enfrenta com coragem os ditames dos escravocratas.
O romance também oferece uma lição sobre o Brasil colonial, respaldada por uma pesquisa histórica meticulosa. A frase "Nada digo de ti que em ti não veja" é uma expressão usada em cartas anônimas da época, e desempenha múltiplos papéis na narrativa: é usada por Vitória para expressar seu amor e, principalmente, para ameaçar Felipe e os Gama; e é a frase que o narrador, representando o tempo, usa para justificar sua intervenção na história das personagens.
O livro expõe as condições desumanas nas minas, onde crianças eram forçadas a trabalhar, e revela como os escravos que sobreviviam às expedições eram muitas vezes assassinados por "saberem demais", destacando a violência e punição da sociedade brasileira. Também aborda o contrabando praticado pelos senhores para evitar taxações e aumentar suas fortunas.
Os conselhos de Vitória guiam Zé Savalú, um escravo que sonha em obter ouro nas minas para comprar sua liberdade e a de seus entes queridos. Com a ajuda de Vitória e a proteção de Felipe Gama, Zé Savalú alcança seu objetivo. Sua jornada intensifica o conflito entre a opressão colonial e a memória ancestral, assim como entre o cristianismo e as religiões africanas. O cristianismo, simbolizado por Santo Antônio, exerce controle, mas Zé Savalú usa o santo como disfarce para esconder o ouro dos escravagistas, inclusive de Felipe Gama. Aqui, a autora conseguiu superar as ideologias que retratam a passividade negra diante da escravidão. Afinal, houveram movimentos de resistência, inclusive, o Zé Savalú encontra quilombolas enquanto está procurando o tesouro.
A narrativa ainda explora as máscaras sociais da elite carioca, como os Muniz, que eram judeus praticando sua fé em segredo enquanto se apresentavam como católicos. Sianinha, noiva de Felipe, demonstra ciúmes em relação à ligação entre Zé Savalú e Quitéria, sugerindo uma possível bissexualidade reprimida.
Para concluir, amei o final que os personagens brancos receberam na narrativa, achei que não poderia ter sido mais apropriado. No entanto, o desfecho de Vitória foi o único que não me agradou. Embora as possibilidades apresentadas pela autora sejam belas, finais em aberto me incomodam, pois prefiro um encerramento mais conclusivo.
Mesmo assim, que livro! Vou panfletar porque já entrou para a minha lista de favoritos.
"Vitória era o seu quinto nome desde que viera ao mundo. Ela nascera como o menino Kiluanji Ngonga. Quando entendera sua verdadeira natureza, foi chamada de Nzinga Ngonga, depois virou sacerdotisa e era chamada de Niganda Marinda (sacerdotisa dos mistérios ancestrais). Desembarcou na América sequestrada dos seus e a batizaram como o homem Manuel Dias. Depois de conquistar sua liberdade, escolheu ser apenas Vitória, pois era assim que se considerava: vitoriosa. Considerava-se quase invencível, pois muito pouca gente que caminhava sobre a Terra havia vivido cinco existências em uma mesma, e escapado de tantos perigos".