Iza 23/06/2022
Senhor das moscas:
O romance: O senhor das moscas do novelista, poeta e dramaturgo inglês, William Golding, é fluída e cativante, amarras são lançadas ao leitor que não consegue se desvencilhar dessa narrativa prazerosa, até que a tenha por concluída.
O pano de fundo dessa estória, é mostrado em um cenário de guerra entre diversos países. São apresentados a priori, um grupo de garotos ingleses sobreviventes da queda de uma aeronave, em uma ilha de paradeiro indeterminado. Ao que tudo indica, eram todos alunos componentes de uma mesma escola e que estavam a fugir do local de origem em busca de um abrigo seguro. No entanto, o planejado não é alcançado quando o avião é atingido, ocasionando uma queda iminente. O resultado de tal descontrole, é a morte de todos os adultos presentes, em contrapartida, curiosamente, com a sobrevivência de crianças entre 6 e 13 anos.
Golding, serviu a marinha inglesa durante a segunda guerra mundial e, como resultado dessa empreitada catastrófica e terrível na vida de tal autor, surgira esse romance de tamanha riqueza e qualidade, que batera de frente com todas as ficções sobre ilhas oníricas da época, em especial, A ilha de Coral, de R. M Ballanthyne, tomando por repetidos os nomes dos personagens principais.
O autor vai costurando, com astúcia, uma dualidade entre as perspectivas contratualistas de Rousseau e Hobbes, expondo uma negativa precisa sobre o primeiro e evidenciando ao longo dos acontecimentos vivenciados pelos meninos, de que ?O homem é o lobo do homem?.
Ralph, filho de um comandante, esbanja simpatia e liderança nata, além de ser descrito como um jovem belo, ganha, automaticamente, a confiança dos demais garotos que o elege, através de votação aberta, como o chefe. Tal acontecimento, por sua vez, não é recebido por aceitação pacífica por parte de um segundo rapaz, o Jack, que contava com a liderança prematura, pois já guiava um coro composto por alguns pequenos. É, portanto, através desse primeiro momento, que o leitor assiste o nascimento de uma rivalidade genuína entre os dois garotos, que explodirá em uma reviravolta tardia e drástica.
Cada personagem, entrega um papel comprometedor com uma função deliberativa que irá regular o andamento dessa pequena ?sociedade? que está se formando. Ralph representa a civilização e o compromisso com a ordem e obediência, somado a análise psicológica Freudiana, que o delimita nos ditames do Ego, que exterioriza os outros dois núcleos de organização dinâmica de um indivíduo. Enquanto Jack, é a personificação da guerra e resistência, o acúmulo de emoções que deturpam a austeridade da democracia e que partilha da arte do convencimento, conquistando os demais jovens pela euforia da liberdade descomedida e selvageria, sendo enquadrado no ID. Porquinho, um personagem desengonçado, gordo e asmático, não é tido com seriedade pelos iguais, que zombam de sua aparência e comportamento; essa figura peculiar representa o conhecimento, a racionalidade em abundância e o cálculo pelas melhores escolhas, porém, por não ser levado em consideração, acaba por atuar na sombra de Ralph, ou seja, é a altivez do Alter-ego.
Ainda sobre Porquinho, portador de deficiência visual, carrega consigo óculos que ser tornará o principal utensílio da vitalidade de Prometeu, que através de seus reflexos em contato com o sol, trará fogo para a comunidade e uma possibilidade de salvamento perante o caos que está se instaurando.
Outro personagem figurativo e de suma importância, é o ?Bicho? idealizado, fruto da constante sensação de medo/incapacidade e, o próprio Senhor das Moscas, outro nome para a criatura mitológica, Belzebu, representado na cabeça de uma porca, ficada em uma estaca de madeira, rodeada por moscas famintas. Esse, por sua vez, sofre intermediação característica do menino Simon, que representa a religiosidade do grupo, dentre um dos diálogos estupendos da narrativa, se transcorre nos seguintes dizeres: Que engraçado achar que o Bicho é algo que podem caçar e matar! ? disse a cabeça. Por um instante, a floresta e todos os outros lugares indistintos ecoaram com a paródia de uma gargalhada. ? Você sabe, não é? Sou parte de você? Quase, quase, quase! Sou a razão por que ninguém pode ir embora? Por que as coisas são o que são? Esse trecho evidencia a singularidade da realidade a qual se situam, consumidos pelo desejo da carnificina, a agonia e liberdade que correm por suas veias, faz com que deixem o mundo velho e ?espirituoso? do colonialismo europeu, para se entregarem à barbaridade do estado de natureza.
Entretanto, mesmo de rostos pintados, músicas compostas e rituais realizados, atrás de toda essa armadura selvagem que criaram com o intuito de afugentar o senso de humanidade e civilidade que detinham, apenas fortalece a crua nitidez da meninez dentro de cada um deles. Hoje, é possível perceber que é totalmente preconceituoso e mistificada a concepção de que seres humanos que vivem em comunidades florestais e que levam esse estilo de vida, caracterizado, erroneamente, de ?selvagens?, não se enquadram nos estereótipos entregues pela narrativa do livro, pelo contrário, os indivíduos que estão submersos nessa condição cultural e enraizada em costumes próprios, são sociedades tradicionais e nativas que não fazem uso desmedido da violência e por razões indeterminadas.
Outro fator relevante dessa perspicaz narrativa, é a ausência de qualquer figura feminina, salvo a da porca, que é brutalmente assassinada e tirada de sua vara, propondo a inexistência de um senso de prosperidade e invisibilidade de qualquer proximidade com figuras maternas. São, portanto, reféns e redutos das suas masculinidades e fragilidades, detidos em um terreno que esbanja a infertilidade da humanidade, frutos da então vivenciada cultura bélica da sociedade, provindas de homens, pelos homens e para os homens.