de Paula 01/03/2023
Muito mais do que um manifesto sobre gênero, é histórico
Que livro incrível! A Úrsula não brincou em serviço quando escreveu este livro. Claro que a camada mais óbvia é a discussão sobre gênero, pensando numa realidade onde este fator é excluído da humanidade o que sobraria de nós como sociedade? Pensando em guerras, por exemplo, a autora expressa que elas provavelmente são motivadas pelo orgulho masculino. A discussão de machismo foi latente e o personagem terráqueo tem diversas falas que o reproduzem, principalmente sobre feições femininas encontradas nos habitantes de Inverno. Mas, além disso, as reflexões sobre o papel de todos numa sociedade que não tem a ambivalência sexual do terráqueo, trás uma ideia de como a nossa posição de mulher na Terra é relegada a procriar e por esse motivo, não ter nenhum valor. Em Inverno, até o rei engravida e não perde seu prestígio e poder por isso. Além do idioma deles não ter a palavra guerra, o que significa que ela não existe? Talvez, provavelmente é o azul em grego, não é porque não tinha uma palavra sobre o céu deixou de ser desta cor.
Ainda sobre a questão de gênero, o que a Úrsula escreveu na década de 50 é uma discussão importante sobre gênero até nossos dias, onde falamos sobre a questão linguística do gênero neutro, o não-binarismo, movimento queer, assexualidade e espectro ace, gênero e sexualidade fluída, gravidez e comportamento pervertido. Todos os aspectos que envolvem este quesito me fizeram lembrar de O fim da infância, onde C. Clarke traz uma provocação incrível sobre entidades e símbolos religiosos com a descoberta do desconhecido. Esse livro é um clássico porque continua tão relevante de quando foi escrito. Ainda hoje, em 2023, mulheres são demitidas após retornarem da licença maternidade, porque ao gerar uma vida a sociedade as interpreta como incompetentes (depois ninguém sabe porque a taxa de natalidade mundial reduziu, principalmente nos países tidos como desenvolvidos, como os europeus). A autora foi visionária, embora ela mesma explique a ficção científica como a leitura do presente, não um conto sobre o futuro. Isso é verdade, afinal, a luta por equidade de gênero nos Estados Unidos tem sido uma batalha secular no Congresso. Devemos começar a ler nas entrelinhas a ficção científica.
O sexo para esses seres humanos é um ritual de acasalamento específico, o kemmer, que acontece como com os animais terrestres. Ele possui regras e ética específica, por isso, questões como estupro e abuso não são reais. Neste momento que entra a distopia da história. Imagina um mundo onde o machismo que matou e mata todos os dias não existisse? Aparentemente, para alguns, este fator fora da jogada deixaria nos todos em situação da primeira meia hora de 2001, Uma Odisseia no Espaço (de novo falando do C. Clarke...). O que Le Guin mostra é que apesar disso tudo, as pessoas ainda permaneceriam tecnológicas, inteligentes, civilizadas e politicas. É um sopro de esperança num mundo repleto de guerras, principalmente uma iniciada em pleno 2022!
Uma coisa que eu ouvi poucas pessoas falando sobre esse livro foi as alegorias com a realidade que a autora fez. Ela falou sobre monarquia e república, sobre socialismo e capitalismo, sobre congresso, polícia secreta e campos de trabalhos forçados (muito semelhantes aos campos onde judeus eram mortos e até as torturas das ditaduras latino-americanas). Ela simplesmente criticou o mundo como o conhecemos em todos os momentos possíveis, apresentando como ele é cruel diante de nossos olhos, onde o sentimento de injustiça inflama o nosso senso de responsabilidade e vida em sociedade. Porém, quando isso acontece em nosso país, normalizamos. Além disso, as pessoas de lá serem consideradas seres humanos é um detalhe bem específico e proposital.Eu fiquei apaixonada pela autora por trazer esses aspectos.
Não há religião em Inverno, mas há Videntes, que sabem sobre o futuro, no qual encontram respostas para as perguntas feitas, mas, não são quaisquer perguntas a serem respondidas. Sim, depois disso sabemos que Douglas Adams não só leu Úrsula, como homenageou na trilogia de cinco livros, com a resposta para A vida, o universo e tudo o mais. Mais do que isso, os mitos daquele planeta mostram que não há divindade, e ainda assim, existe muito respeito e amabilidade entre as pessoas. As crenças deles se assemelham as pessoas da idade antiga e suas mitologias.
A construção de mundo é lenta e existem momentos mais cansativos, mas a jornada no polo norte do planeta foi muito interessante. Até essa viagem começar, não me importei muito com os personagens, havia um verniz de distanciamento, que foi quebrado com essa aventura. No meio da neve, o isolamento me lembrou a pandemia que passamos em 2020, também fez um paralelo em minha mente das consequências psicológicas que os personagens sofrem com Poeira Lunar (a última vez que cito C. Clarke aqui!), sobre o pânico social após uma experiência isolante. Mas, neste momento podemos acompanhar uma das maiores histórias de amor da ficção científica, uma das mais belas que já li. Aqui podemos fazer um paralelo de um romance não hetero normativo, onde as pessoas passam por um processo de autoaceitação para entender o que sentem. É simplesmente lindo e singelo, onde o amor é visto nos detalhes, sensação de júbilo, como o próprio protagonista conta.
Esse livro precisa ser lido por todos, onde podemos aprender mais sobre quem somos e onde estamos indo. Será que os nossos avanços tecnológicos foram saudáveis? Para onde estamos indo? Nossa política é a melhor? Nos importamos com a humanidade? Enfim, são respostas que serão encontradas no livro se soubermos o que perguntar, além de pensarmos sobre o assunto. Recomendo demais e que as pessoas se tornem mais tolerantes e compreensivas sobre o que somos, nossos direitos e como nos posicionamos no mundo.