Julio.Cesar 03/12/2022
Um ensaio sobre a alteridade
A Mão Esquerda da Escuridão é meu primeiro contato com a obra de Ursula K Le Guin e não imagino que pudesse haver melhor porta de entrada. Não é de hoje que o seu nome é tido como um dos mais célebres da literatura moderna e sua genialidade seja reconhecida dentro e fora do campo da ficção científica, mas finalmente ter a chance de me aprofundar no trabalho de Le Guin foi algo que me permitiu compreender em alguma medida a grandiosidade de suas ideias, de modo a ser arrebatado por sua escrita e me ver encantado por sua capacidade de criar universos tão singulares e tangíveis.
O próprio entendimento de Le Guin quanto à ficção científica já é suficiente para situá-la dentro do circuito do sci-fi e elucidar seus interesses enquanto escritora. Para Ursula, a ficção científica não está incubida de prever o futuro através das ?profecias? de escritores, mas de descrever a realidade por meio de ?mentiras?, mentiras que em suma consistem em metáforas e analogias para as questões sociais, políticas e de qualquer âmbito pertinente à humanidade de seu tempo. Um exemplo muito cabível desse tipo de abordagem é o da obra de Margaret Atwood, outra gigante da ficção científica que busca tecer reflexões acerca de feminismo e gênero a partir de fragmentos da realidade, utilizando do caráter especulativo da ficção distópica para denunciar situações de desigualdade recorrentes no presente.
Um dos aspectos mais surpreendentes desta obra de Le Guin, é a habilidade em abordar tantos temas num curto espaço de tempo (estamos falando de um livro com menos de 300 páginas) sem cair em discussões superficiais ou subdesenvolvidas. A autora consegue equilibrar as discussões ao passo que desenvolve o universo e seus personagens, de modo a conduzir com maestria tudo que se propõe a debater tal como estivesse dissertando um ensaio filosófico. Por meio dessa engenhosidade sem tamanhos, Ursula faz com que as questões de seu interesse tornem-se intrínsecas ao universo dos personagens, permitindo que os debates quanto à sexualidade, gênero, etnocentrismo e patriotismo transpareçam uma organicidade sem igual.
Agora? voltando a atenção para a história, pode-se dizer que dentre as tantas coisas que o livro é, temos aqui um ensaio sobre a alteridade. Num estilo bem familiar ao sci-fi utópico e planetário de Star Trek, Ursula nos leva a acompanhar a jornada do terráqueo Genly Ai frente à civilização do planeta Gethen. Enviado pelo Ekumen, uma organização de civilizações interplanetárias da qual a Terra faz parte, numa missão pacífica com vistas a estabelecer um canal de conexões, Genly Ai se vê confrontado por questões que até então nunca haviam sido pertinentes a sua vivência e busca estabelecer diálogos a fim de conhecer e compreender a realidade tão distinta do povo getheniano.
O choque cultural mais imediato se dá pela morfologia das espécies gethenianas. Ambissexuais e visualmente andróginos, os habitantes de Gethen possuem um ciclo sexual distinto dos seres humanos. Periodicamente, os gethenianos entram no ?kemmer?, uma espécie de ?cio? voltado para a fertilidade e troca de afetos, que faz com que seus corpos sofram transformações hormonais e anatômicas responsáveis por evidenciar características femininas ou masculinas temporariamente.
O estranhamento de Genly Ai para com o Kemmer só não é maior que o choque dos gethenianos para com os corpos humanos, que além de não estarem familiarizados com o conceito de binariedade vigente na sociedade terráquea, se veem escandalizados com a possibilidade de um indivíduo estar em ciclo sexual constante. Além das particularidades biológicas, a ausência de papéis de gênero dentro da civilização getheniana os distancia de qualquer aproximação com as convenções heteronormativas que regem a sociedade humana, gerando assim um clima crescente de desconfiança e dúvidas quanto ao protagonista e às intenções de sua expedição.
Além do campo do gênero e sexualidade, Ursula começa a trazer à tona questões de xenofobia e patriotismo ao desenvolver as tramas de conspiração dentro do sistema político getheniano, que sofre com a rivalidade das duas principais nações do planeta, Karhide e Orgoreyn. O medo do outro é constante. Em meio à iminência de novos conflitos decorrentes de sua chegada, Genly Ai se vê sob o fogo o cruzado e une-se ao ex-nobre Estraven, personagem envolto por controvérsias e nuances que vem a ser exploradas ao longo do romance (em capítulos próprios, por vezes), que guia o protagonista em uma fuga pelo Planeta Inverno. Nesta jornada, as discussões de alteridade ganham corpo à medida que as diferenças culturais são acentuadas, permitindo que as personagens troquem conhecimentos entre si sobre aquele mundo vasto e opulento.
O mergulho etnográfico promovido por Ursula é admirável não somente pelo êxito em estabelecer as regras e detalhes do universo que criou, mas por apresentar as informações deste universo sem se restringir a estruturas convencionais. Durante a leitura, a autora alterna os capítulos regulares para dar lugar a documentos de expedições, relatos de personagens que visitaram o Planeta Inverno em outras épocas, contos e lendas folclóricas que realçam a beleza da cultura getheniana, abordando não apenas a história daquela civilização de maneira objetiva, mas também de imergindo o leitor em passagens com forte caráter poético e lírico.
O trabalho de Ursula em desenvolver uma geografia própria para seu universo é outro espetáculo à parte. Sem se ater unicamente às descrições de mundo detalhistas que por vezes podem ser cansativas, como nos universos de Tolkien e Martin, aqui a autora une o ofício cartográfico à contação de histórias e ao lirismo, fomentando uma visualização das paisagens, fauna e flora de forma verossímil, ao passo que estabelece certas concepções visuais menos tangíveis, abrindo assim mais espaço para o exercício imaginativo do leitor.
Mesmo quando volta a atenção para a apreciação dos aspectos físicos e biológicos, a autora traça comentários pertinentes à etnografia e se interpõe entre as personagens de Genly Ai e Estraven. Genly, apesar de não estar em uma missão colonizadora, carrega preconceitos e uma visão de progresso civilizatório que justificam o medo e a desconfiança por parte da população nativa. Seus conceitos de pátria e territorialidade são muito vagos para os habitantes do Planeta Inverno, e em certo momento chega a ser questionado quanto ao significado de amor ao próprio país, quanto ao conceito de um lugar marcado pela delimitação espacial, à imposição de uma fronteira. ?O que é o amor pelo seu país? É o ódio pelo seu não-país? Então não é uma coisa boa. É apenas amor-próprio?[...]?.
Apesar dos feitos brilhantes de Le Guin em demarcar a alteridade por meio da dualidade dos personagens principais, a obra apresenta limitações (muitas delas por conta da época em que foi escrito), limitações estas que posteriormente viriam a ser reconhecidas e repensadas pela própria Ursula. Apesar de estar trabalhando com conceitos de não-binariedade, a autora ainda se encontra presa a muitas convenções que partem de um olhar masculinizado, desde de os pronomes aos estereótipos de gênero (que diga-se, são válidos na medida que contribuem para a constituição no campo diegético mas se tornam vazios ao continuarem reproduzindo concepções sexistas), e no tocante à heteronormatividade do presente no kemmer, que suprime muitas possibilidades dentro do conceito apresentado pela autora.
Mas ressalvas à parte, o universo construído por Ursula e a história desenvolvida aqui continuam atemporais. Apesar de ser um livro de ficção científica denso em certa medida, a obra de Le Guin não deve ficar restrita aos entusiastas do gênero, uma vez que a escritora perpassa uma série de convenções e pôde ter ao longo de sua vida o prestígio de atravessar diversas áreas do conhecimento, mostrando-se relevante dentro e fora do sci-fi. Ano que vem completam-se cinco anos desde sua partida, e uma das formas de honrar seu legado é lendo sua obra e fazendo o possível para que mais leitores e leitoras possam ter a experiências de serem atravessados pela genialidade de Ursula.