Gisele @abducaoliteraria 14/11/2019Eu finalmente posso dizer que já li algo da Ursula K. Le Guin. Como uma boa fã de ficção científica, essa é uma das autoras que não pode faltar no curriculum de experiências. Apesar de não ter escolhido realizar essa leitura no melhor dos momentos, porque é difícil encarar um livro denso e complexo saindo de uma ressaca literária, depois de um começo truncado, a história finalmente se conectou comigo.
Genly Ai é um enviado do Ekumen, uma organização com aproximadamente 80 planetas que tem como finalidade compartilhar conhecimento, comércio e entre outras coisas sem fins lucrativos. A missão dele como enviado é convencer o planeta Gethen a se unir a essa organização. Só que este novo planeta não faz ideia que existem outros além dele.
No início, Genly consegue passar despercebido. O terráqueo é um pouco mais alto e negro, enquanto os nativos possuem o tom da pele avermelhada. A principal diferença fisiológica entre eles é a ausência de gênero entre os habitantes de Gethen. De tempos em tempos eles entram no kemmer, uma espécie de cio, no qual eles desenvolvem órgãos sexuais para a reprodução. É interessante perceber como Genly encontra dificuldade de compreender essa distinção. A todo custo ele tenta localizar características femininas ou masculinas entre as pessoas que o cercam, quando na verdade eles são andróginos. Para eles, é inútil explicar essa diferença.
"Todo o nosso padrão de interação sociossexual inexiste aqui. Eles não conseguem entrar no jogo. Não veem um aos outros como homens ou mulheres. É quase impossível nossa imaginação aceitar isso. Qual a primeira coisa que perguntamos sobre um recém-nascido?"
Outra dificuldade que Genly encontra para se adaptar a este mundo são suas condições climáticas. Não por acaso, Gethen ficou conhecido entre os pesquisadores como Inverno, porque lá é capaz de nevar até mesmo no ápice do verão. No entanto, o principal conflito que ele encontra é lidar com as intrigas políticas. Apesar de nunca ter havido guerra, existe uma atmosfera de tensão entre os diferentes povos e nações, então Genly se sente perdido, sem saber como agir corretamente e em quem confiar.
A Mão Esquerda da Escuridão é um livro lento, com inúmeras partes arrastadas. Acredito que ele poderia sim ser um pouco mais enxuto, mas a história precisa ser digerida com a mesma intensidade com que ela foi criada. O livro te convida para conhecer minuciosamente uma sociedade peculiar, muito diferente da qual estamos habituados.
Essa é uma obra antropológica, que provoca muita imersão no decorrer das páginas. Ela exibe profundamente os principais pilares que sustentam Gethen, como questões sociais, geografia e filosofia. Algo que serviu também para enriquecer o universo, foram os contos apresentados em paralelo à trama principal. Através deles, pude conhecer e entender um pouco mais sobre as lendas e a mitologia do universo.
A partir do momento que comecei a compreender a história e me envolver com ela, a trama começou a conversar muito comigo. Essa é uma história profunda e subjetiva, capaz de emocionar em diversos momentos. Deu para compreender o porquê deste livro ser atemporal, porque ele trabalha questões pertinentes, principalmente aquelas voltadas ao gênero, algo que nos delimita tanto. Ainda temos um longo caminho pela frente para alcançar o equilíbrio e extinguir as desigualdades.
"Vi então novamente, e de uma vez por todas, o que sempre tivera medo de ver e vinha fingindo não ver nele: que ele era uma mulher, assim como era um homem. Qualquer necessidade de explicar as origens desse medo desapareceu junto com o próprio medo; o que me restou, finalmente, foi a aceitação dele tal como era".
Um dos pontos negativos é a falta de particularidades entre as vozes dos personagens centrais. Por termos dois pontos de vistas, não só de pessoas diferentes, mas também seres de espécies diferentes, esperei uma visão completamente distinta por parte do nativo de Gethen. Ao contrário disso, elas eram extremamente iguais, tanto é que sempre iniciava o capítulo sem saber sob qual ponto de vista estava.
Fora isso, minhas expectativas foram alcançadas. Ursula K. Le Guin me surpreendeu logo no início, com uma das melhores introduções que já tive a oportunidade de ler. Ela divaga a respeito do conceito de ficção científica e mostra uma visão diferente sobre o gênero. Ainda que o início do livro tenha se mostrado maçante, em contraste com a maravilhosa introdução, depois tudo fez sentido. Essa é realmente uma obra grandiosa, que merece todo o prestígio que tem. Agora estou muito mais empolgada para conhecer as demais histórias da autora.
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