Maltenri 02/08/2011
O que uma bela capa não faz...
Adquiri recentemente o box contendo a trilogia Dragões de Éter. Grandemente influenciado pelo enorme volume de críticas favoráveis, decidi lê-lo o quanto antes. Acabado o primeiro tomo, resultou um misto de esperança e decepção.
Comecemos pelo começo como já dizia o sábio grego (Aristóteles). Raphael Draccon, jovem escritor carioca, começa sua jornada pelo mundo da literatura com “Caçadores de Bruxas”, livro de literatura fantástica. O livro é baseado em vários dos contos de fadas que povoaram muitas infâncias por aí. Esses contos, como estabelece o autor, são extraídos de episódios ocorridos em Nova Éther, mundo povoado por humanos principalmente mas também por vários outros tipos racionais (mais ou menos desenvolvidos).
A sinopse é difícil de ser resumida sem “spoilar”, razão pela qual suspeito da ausência de tal prática na contracapa ou na orelha do volume. Neste mundo fantástico, e mais precisamente na capital do reino de Arzallum, Andreanne, reina a paz após um período violento e sombrio. Durante este período, chamado de Caça às Bruxas, combates violentos e uma atmosfera negra reinavam no mundo. Após o fim deste episódio trágico, o herói do momento, Primo Branford, assume o trono do reino. Estabelece vários anos de paz, tumultuadas apenas por dois episódios trágicos: as histórias de chapeuzinho vermelho e de João e Maria. Porém, após todos estes anos de paz, uma sombra paira sobre o reino e a paz pode não ser mais tão garantida quanto todos gostariam de acreditar.
O leitor atento vai reparar num paradoxo: contos de fadas associados a eventos trágicos? Esta é a maior força do romance de Draccon. Ele consegue, e muito bem, rever contos que são bonitos para crianças, dando explicações mais racionais e adultas para os eventos ocorridos nesses contos, ao mesmo tempo imaginando o que aconteceria com os protagonistas Chapeuzinho Vermelho, João e Maria – que também são alguns dos protagonistas do livro. Desta forma, clássicos da literatura infantil se tornam contos trágicos sob a pluma de Raphael Draccon.
Alguns dos contos revisitados são, claro, “Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau”, “João e Maria”, mas também “Capitão Gancho” ou a ”Princesa e o Sapo”, tudo regado as mais diversas referências da cultura pop.
Observando o grande número de contos abordados pelo autor, pode-se chegar a uma conclusão: muitos são os personagens de “Caçadores de Bruxas”, sejam eles oriundos de contos ou da imaginação do autor. Durante todo o livro, o autor-narrador segue um ou outro de seus personagens principais, bem ao estilo das mais variadas histórias fantásticas.
O jovem carioca escreve de maneira leve, com um vocabulário bem acessível, ideal para jovens leitores. Uma ou outra palavra podem ser desconhecidas, porém nada que um bom dicionário não resolva. Seu estilo leve, com frases curtas, permite uma leitura rápida e agradável da obra: ponto muito promissor para uma primeira tentativa escrita.
Como já disse, a narração é feita pelo autor-narrador, e nesta história isto é mais do que nunca verdade. Não direi mais para não estragar uma das descobertas fundamentais da obra. No entanto, gostaria de fazer minhas as palavras do editor Pascoal Soto, quando este declara que Raphael Draccon é um bardo de nossos tempos. Não acredito haver melhor definição para o estilo de Draccon. Digo isto pois realmente temos a impressão durante o livro que o narrador está frente a frente conosco, em uma taberna, bar ou qualquer outro estabelecimento onde servem comes e bebes, contando (ou cantando, pois era o que os bardos de outrora faziam) uma história de terras ou tempos desconhecidos.
Esta característica é interessante e inusitada. Apesar da originalidade, durante a obra, o estilo é inconveniente muitas vezes. Credito isto na conta da inexperiência. Muitas vezes, para dar opiniões ou fazer piadas como se estivesse contando oralmente uma história, o narrador interrompe a história, quebrando o ritmo e de certa forma perdendo um pouco o leitor. Este tipo de interrupção funciona em conversas, porém no escrito isto esfacela a trama, tornando a leitura por vezes enfadonha.
Continuando no tema da narração, é importante salientar que uma narrativa feita acompanhando ora um personagem, ora outro, não pode ter capítulos tão breves quantos os de “Caçadores de Bruxas”. Como já estabelecido, cortar toda hora a evolução da trama só perde o leitor, que não consegue se firmar em aspecto algum de uma história. Ler vários aspectos de uma trama não é um problema, e sim uma vantagem, porém mudar de perspectiva a cada minuto lido torna-se um problema. Vide o exemplo da série televisiva americana “The Event”, muito criticada neste aspecto.
Outro problema freqüente é um certo enchimento de lingüiça, num português bem direto. Piadas repetitivas, explicações desajeitadas e por vezes incompreensíveis além de dar vários pontos de vista para um mesmo evento (poderia ser interessante se o autor não usasse as mesmas frases e parágrafos nos diferentes pontos de vista) são encontrados no decorrer da trama. Acredito que a intenção fosse aumentar o aspecto da conversa com o leitor, mas muitas vezes isto satura desnecessariamente a narrativa.
Um problema grave, que a meu ver pode se tornar erro freqüente caso não seja remediado, é o fato do autor anunciar a torto e a direito o que vai acontecer em seguida alguns capítulos antes do real momento. Como quando assistimos “Caverna do Dragão” (para utilizar o exemplo do autor), ou qualquer outra série de TV, e a cada intervalo ou fim de episódio, o narrador fala: “porém uma nuvem negra paira sobre os heróis”, ou então, “porém esta decisão vai ter conseqüências mortais no próximo episódio”. A trama é suficientemente boa sem este tipo de artifício para prender o leitor. O leitor quer, e vai saber o que acontecerá. Um livro não é um programa de TV que busca garantir telespectadores custe o que custar. É como contar uma piada e começar a rir antes do final: o receptor não sente o que sentiria se tivesse descoberto o final sozinho.
Para terminar o quesito narração, percebe-se que é o primeiro livro do autor quando muitas vezes durante diálogos, o autor alterna momentos de linguagem formal com linguagem informal no mesmo diálogo. Isto torna tudo menos verossímil, e colabora para uma imersão nem tão eficiente.
Falando em imersão e linguagem, é importante mencionar a mistura que o autor faz de gírias e expressões modernas (especialmente carioquismos, fazendo jus a sua origem) em alguns momentos com uma linguagem excessivamente formal, utilizadas há sabe-se lá quanto tempo e completamente inutilizadas hoje em dia. Tudo isto torna o universo ainda menos crível, sendo que uma linguagem normal moderna e uniforme, sem muitas gírias, seria mais do que suficiente para a imersão total do leitor.
A questão do universo também ainda não foi dominada por Draccon. No começo do livro nos deparamos com um mapa (que não saiu bem na impressão, pelo menos na minha edição da Leya, muito escuro, não podendo ser bem analisado). Porém no desenrolar dos eventos, muito pouco se utiliza realmente do mundo físico: o mapa torna-se supérfluo. Talvez nos próximos volumes da saga ele se torne importante, porém neste primeiro, é um elemento totalmente desnecessário. Mas isto é um detalhe perto dos outros problemas do universo criado por Draccon.
O maior problema é Draccon se perder no próprio universo. Pode parecer improvável, mas uma leitura atenta mostra que Draccon não se sente tão à vontade assim dentro de sua própria criação: problemas de câmbio entre as moedas do universo, anunciadas de um jeito no começo, porém mudadas no decorrer da trama (ou então o Raphael errou na matemática); um príncipe com problemas de geografia e conhecimento dentro de seu próprio reino (quando foi estabelecido que este entende a geopolítica de Nova Éther); ou então um personagem, que está em período de aprendizado escolar não saber diferenciar as raças do mundo (como se alguém não conseguisse diferenciar um gato de um cachorro no nosso mundo).
Da mesma forma, certos elementos podem parecer extremamente inverossímeis para o leitor atento: senhas de segurança máxima que não mudam em anos (algo realmente seguro e normal).
E há também incongruências na história tecida pelo autor: a maior delas sendo a história entre a rainha e o rei de Arzallum; ou então um personagem já calejado por guerras e crises que se deixa levar a loucura por um dia e meio de crise.
Pode parecer implicância com pequenos detalhes, porém quase qualquer um pode criar um universo bruto. A diferença, ou seja, a marca da excelência está na lapidação que o criador faz nos seu universo: os mais verossímeis, os melhores são aqueles em que tudo se encaixa, nem que todos os pormenores fazem sentido. É no detalhe que se encontra o verdadeiro brilhantismo.
A maior crítica que posso fazer, no entanto, está no âmbito intelectual e filosófico.
É verdade que o autor desenvolve uma belíssima metáfora no decorrer da narrativa, falando sobre o criador-escritor, por intermédio do narrador. Desenvolve idéias interessantes, como o fato de tanto o criador como os observadores da criação – ou seja, o leitor – serem responsáveis pela perenidade do mundo. Ou então o fato do criador moldar e modificar o mundo como deseja, estabelecendo isto como uma prerrogativa básica do escritor. Enfim, Draccon trata leitores e escritores da mesma forma, dando responsabilidades a ambos e instigando a imaginação do leitor, que segundo ele, está só a um passo de descobrir um novo universo, que tenha relações com o nosso e com todos os outros já descobertos (como ele descobriu Nova Éther).
No entanto, no decorrer da obra, Draccon apela para um maniqueísmo absurdo: o Bem e o Mal estão sempre presentes e o autor mostra seus personagens como um ou outro. Tudo é construído através do prisma desta dualidade: sentimentos, ações, pensamentos. Nada é uma coisa e outra ao mesmo tempo. Inúmeras são as vezes em que as palavras aparecem, sempre dividindo as coisas de formas grotesca, sem deixar espaço para o meio-termo. Por exemplo, orgulhar-se de algo feito com justiça é maléfico, e só a humildade é o bom caminho. Ou então o fato de negar ajuda a alguém é errado, mesmo que isso cause enorme dano a si mesmo e possivelmente outros. E mais, a providência recompensa aqueles que seguirem por tais caminhos “bondosos”.
O que nos leva a um ponto fundamental da obra: o excesso de lições de morais construídas para crianças. É verdade que a história se passa num mundo de conto de fadas, mas como o autor estabelece no início, um conto de fadas mais adulto. E não é o que se reflete nas incessantes lições de moral sobre o Bem contra o Mal. Nada melhor para exemplificar do que quando um dos personagens declama do alto de toda sua maravilhosa filosofia de porta de boteco que mesmo a plebe é cheia de gente rica apesar de seus meios materiais limitados, fazendo alusão, claro, à riqueza de caráter destas pessoas. Uma verdadeira apologia ao politicamente correto.
Algo que me deixou preocupado foi a doutrina religiosa cristã, e especialmente católica, existente na obra. Ao melhor estilo “Crônicas de Nárnia”, o carioca planta diversas filosofias religiosas na sua obra. Já falei do maniqueísmo e da providência que recompensa os de coração puro. Existem ainda diversos outros exemplos, sendo o mais marcante o “Criador”, que aparece em destaque a cada cinco minutos, provedor de tudo e responsável por todos, que olha pelas suas criações sem descanso; justo e cheio de compaixão, mas que não hesita ao castigar os que vão contra seus desígnios. Ou então as repetidas vezes em que o narrador descreve como a fé tudo resolve, pois este é o sentimento de maior importância e pureza. Sem falar nas fadas, que lembram estranhamente os profetas e anjos bíblicos, pregando a lei divina e testando os homens.
Podem falar que estou sendo demasiadamente implicante, mas tudo isto junto lembra demais um dogma que todos conhecemos. Mas prefiro responder usando as palavras do autor: “pelo Criador”, ou “que o Criador nos ajude”, ou então, a mais indicativa de todas, “Que as fadas estejam conosco (...); elas estão no meio de nós”. Lembrando que as fadas são as representações físicas do Criador.
Por essas e outras, não consigo considerar “Caçadoras de Bruxas” um bom livro. Raphael Draccon é talentoso e tem futuro, inquestionavelmente. Mas deveria ater-se a criar e narrar boas histórias, sem tentar dar lições de vida religiosas. Acho que qualquer humanista ficaria com os cabelos em pé ao ler este livro, especialmente quando o autor considera que nem todos os homens são iguais (*SPOILER**SPOILER* *SPOILER* sacrificar um membro da família real é melhor do que um outro qualquer *SPOILER* *SPOILER* *SPOILER*) . O estilo é interessante, com algumas falhas aqui e acolá, frutos certamente da inexperiência. As idéias e filosofias veiculadas pela obra, no entanto, são inteiramente dispensáveis.