Jão 04/04/2020
Sonata a Kreutzer
É difícil, nos dias de hoje, encontrar uma pessoa que tenha acesso à informação e não esteja habituado com o termo "feminismo", assim como às suas variantes. Você mesmo pode se identificar com o movimento e, por isso, tenha se interessado em literatura feminista. Bom, se você chegou a Sonata a Kreutzer acreditando que tal obra foi um expoente feminista na Rússia czarista do século XIX, lamento te frustrar, mas ela não foi. Contudo, é inegável que essa novela seja um dos mais intrigantes e peculiares livros dos quais já li. Tolstói pode não ter escrito uma obra feminista - no sentido estrito da palavra - mas produziu algo que lhe fará refletir sobre a condição da mulher e principalmente como os homens se relacionam com as mulheres.
Sonata a Kreutzer trata-se de uma antiga novela publicada pelo grande Liev Tolstói em 1889. Seu enredo não é dos mais geniais: conta, através de um monólogo disfarçado de diálogo, a breve história de como e porque um homem chamado Pózdnychev assassinou sua esposa. Apesar da história em si não ser das mais cativantes, sendo constituída de longos parágrafos e uma intensa repetição das mesmas ideias, o que lhe fará parar e ficar boquiaberto é a opinião do protagonista - e acredito que do próprio escritor - sobre a condição da mulher na sociedade. Sim, é inegável que existem diversos momentos completamente sem sentido dentro da obra, momentos de puro patriarcalismo e machismo. Porém é importante lembrar que essa é uma obra própria de seu tempo, ou seja, obviamente ela conterá pensamentos que não são mais totalmente aceitos em nossa sociedade, e que bom que eles não são mais. Ainda assim, Tolstói foi capaz de criar uma filosofia a qual revela um importante dogma do movimento feminista.
Foi no século XIX, num país extremamente patriarcalista e essencialmente machista que um homem, com os erros e falhas de alguém do seu tempo e local, diz aos quatro ventos algo simples e poderoso. De nada importa se damos a mesma educação às mulheres, tornamo-nas médicas, advogadas e pesquisadoras, fazemos com que elas recebam melhores salários se ainda assim continuarmos a olhá-las como simples objetos da sexualidade. Em seu longo monólogo, Pózdnychev - e também Tolstói - afirma esse seu dogma através de dois simples pilares.
"O mesmo se refere à emancipação da mulher. Pois a escravidão da mulher consiste apenas em os homens desejarem usá-la como um instrumento do prazer e acharem que isso é muito bom. Libertam, então, a mulher, concedem-lhe vários direitos, iguais aos do homem, mas continuam a considerá-la um instrumento do prazer e educam-na, dessa forma, na infância e por meio da opinião pública. E ela continua sendo a mesma escrava humilhada e corrompida, e o homem continua sendo o mesmo escravocrata depravado."
Primeiro, todo menino é puro, inocente e trata quaisquer pessoas da mesma forma. Todavia, a partir do momento em que ele é forçado a ser "homem", isto é, a partir do momento em que ele é obrigado a adotar ativamente nossos costumes tão maléficos às mulheres, acontece sua corrupção. A partir daí, toda e qualquer ação feita para com uma mulher visará unicamente o sexo. E aqui eu pergunto: a tão famosa, em nossa geração, "friendzone" não seria um claro exemplo disso? Um homem que se aproxima de uma mulher por meio de uma falsa amizade pretendo unicamente ter uma relação como um namoro ou algo do gênero. Novamente, a mulher é tão somente um objeto para se obter prazer.
Segundo, sim, nossa sociedade está cada vez mais cheia de mulheres independentes, que trabalham, sonham e conquistam. Mas quantas delas não sentem uma obrigação quase inexplicável de se sentir linda? De ser a todo momento alguém de aparência "perfeita", sem falha alguma. Tolstói - e também Pózdnychev - escreve que desde cedo incutimos nas mulheres essa ideia de um padrão de beleza o qual deve ser seguido por todas. Mais uma vez, do que adianta ter tantas mulheres se emancipando se elas continuam sendo medidas principalmente pelo quesito "beleza"?
As ideias aqui contidas obviamente não são novidade para alguém já minimamente dentro do movimento feminista, tampouco são ideias revolucionárias para nós. Contudo, o que pode te fazer se maravilhar com essa novela é o fato de alguém ter, publicamente, dito tudo isso. É um senhor já idoso expressar ideias tão estranhas para sua época e nação sem ter medo de ser punido e julgado. Repito que tudo que Tolstói escreveu não é novidade para qualquer feminista, é, na verdade, o básico do movimento. Contudo, o que me deixou maravilhado com a obra é o fato dela representar para os homens - e aqui eu, obviamente, me incluo - para que possamos dar mais um passo para se libertar de tantas condutas erradas que nos foram ensinadas como certas, para enfim nos libertarmos de uma doutrina atrasada, deprimente e cruel. Sonata a Kreutzer é, nem de longe, uma obra feminista, mas é, antes de tudo, um convite para sair da inércia dos pensamentos do machismo que envolvem nosso mundo, é um convite para te fazer pensar um pouco mais sobre o que é o amor, o casamento, ciúmes e tantos outros temas de vital importância para a nossa vida.