Ana Alice 05/03/2023
Nunca consigo escrever apropriadamente sobre Tolstói
Tolstói é autor de um dos meus livros favoritos: "A morte de Ivan Ilitch". Por isso, quando peguei esse livro para ler, mesmo sabendo o foco principal da trama, eu esperava que fosse me encantar tanto quanto o livro que eu li anteriormente.
Apesar de não ter chegado perto de me emocionar tanto quanto "A morte de Ivan Ilitch", "A sonata a Kreutzer" é um retrato fantástico da sociedade do final do século XIX. Entendo as controvérsias e as polêmicas em torno dessa obra, mas acredito que o autor fez um trabalho excelente em retratar o patriarcalismo e a crise conjugal dentro da realidade histórico-social em que vivia.
É inevitável fazer comparações com Dom Casmurro, uma vez que as duas obras abordam o mesmo tema central e estão inseridas no mesmo contexto de produção: o Realismo. Em Dom Casmurro, Machado de Assis consegue ridicularizar o homem burguês e os seus ideais, por meio da ironia e de mecanismos narrativos muito sutis. Em A Sonata a Kreutzer, Tolstói assume um tom mais sério, o que é coerente com a sua própria biografia. A novela é narrada de uma maneira interessantíssima: o protagonista, que faz o relato em primeira pessoa, sequer ocupa o papel principal. O foco da trama é o seu interlocutor: Pozdnychev, um homem que assassinou a própria esposa por causa dos seus ciúmes. Durante o desenrolar da trama, esse assassino tenta se justificar, e nos conta a respeito da sua história.
Em seu grande monólogo, o leitor descobre alguns aspectos sobre o seu passado que refletem definitivamente na psique de Pozdnychev, como a sua traumática perda de virgindade. Dentre os muitos pontos que achei interessante, um se destacou: o conflito dos seus desejos com o seu forte moralismo. Ele critica o sexo, o casamento, a relação da maternidade, a medicina, a autonomia das mulheres com os seus próprios corpos. Chega a reconhecer que a sociedade está decadente porque as mulheres são vistas como objetos de prazer, mas atribuí a elas próprias a culpa por essa objetificação. A esposa, que sequer tem nome, é alvo de seu criticismo, no seu relato, toda vez que toma alguma atitude que reflete uma dissonância com a ordem social: seja a sua vontade de usar métodos contraceptivos ou de tocar piano com violinista. No entanto, a contradição presente em Pozdnychev é evidenciada quando ele sente remorso após matar a sua esposa; percebemos então que a justificativa que ele dá ao narrador é, na verdade, uma tentativa de aliviar a culpa cristã que ele próprio sente após ter matado a sua mulher por um motivo tão frívolo. A crítica, por Tolstói, é feita de uma maneira exímia, que faz o leitor a sentir nojo e raiva pelas atitudes de Pozdnychev. Certamente, é um livro ótimo para se entender a situação das mulheres na sociedade russa do final do século dezenove, que infelizmente se aplica em alguns pontos aos dias de hoje, e que merece releituras para a compreensão de todas as suas nuances.