Lucas 06/04/2019
A perturbação de um indivíduo obsessivo e contraditório: Quando Tolstói foi menos "Tolstói" e mais "Dostoiévski"
Liev Tolstói (1828-1910) possui em suas obras muitos "apegos" com dogmas centrais da realidade humana. A morte, o passamento, o casamento, a vivência familiar, as degradações morais que o tempo pode causar são temas muito presentes, em maior ou menor grau, em obras como Felicidade Conjugal (1859), Guerra e Paz (1869), Anna Kariênina (1877), A Morte de Ivan Ilitch (1887), entre outros.
A Sonata a Kreutzer, de 1891, é um dos vários trabalhos do autor russo que entraram para a história literária pela sua profundidade oral, não meramente pela sua abrangência em termos cronológicos ou pela variedade de escopos sociais na qual se debruçavam. A premissa da obra aqui resenhada é, inclusive, bastante simples: é uma conversa entre dois cidadãos em uma viagem de trem, toda ela narrada em primeira pessoa.
Pózdnichev é o protagonista: a obra é quase que um monólogo, na qual ele vai contando a sua história e seus pontos de vista bem controversos sobre casamento e o papel da mulher na sociedade a um narrador que pouco participa da história (este é, inclusive, um arranjo narrativo peculiar, porque esse narrador não exerce nenhuma influência sob o protagonista, incumbindo-se apenas de relatar ao leitor o que está ouvindo). A narrativa do desprezível Pózdnichev é o ponto definidor das inúmeras censuras que a obra sofreu quando da sua publicação na Rússia.
A ignomínia trazida por A Sonata a Kreutzer nasce de uma total falta de "decoro" para com os padrões morais da época. Para quem já conhece Tolstói de outros trabalhos, a história é tão crua e chocante em alguns momentos que tornam difícil que o leitor não se pergunte a si mesmo se o autor dessa novela é o mesmo que deu ao mundo as maravilhosas e inesquecíveis linhas de Guerra e Paz. O mais assombroso, no entanto, é que as opiniões assustadoras de Pózdnichev nascem de uma lógica que não parece ofensiva num primeiro momento, mas que serve de base para uma monstruosidade poucas vezes vistas na literatura.
O protagonista se define como um libertino e alguém que não acredita no amor ou pelo menos na concepção mais "real" ou romântica dele. De fato, ao se sentir culpado por ter se tornado um devasso, concebe inicialmente ao seu relato uma carga de inocência compreensível. Pózdnichev fala abertamente sobre experiências sexuais, por exemplo, e do quão degradante ela pode ser se for realizada no momento e nas circunstâncias erradas. Cabe aqui às críticas a uma realidade cheia de rótulos, onde homens "puros" não eram vistos pelos próprios como seres normais, mas indivíduos retrógrados e infantis e que a perca da virgindade masculina deveria ser um processo normal da existência humana, sem que houvesse qualquer relevância quanto à origem ou sentimentos da mulher que "participaria" desse momento (algo não muito distinto da realidade atual em alguns meios).
Mas Tolstói, que quis realmente expor a alma de alguém perturbado, dirige a trajetória de Pózdnichev aos mais nefastos recônditos que uma mente humana pode abrigar. Partindo dessa questão íntima, o protagonista menciona o papel da mulher nesse meio e aí é que surgem as controvérsias d'A Sonata a Kreutzer, que, se não a tornam censurada nos dias atuais, a conceituam como um relato de um machista irremediável e asqueroso. Para Pózdnichev, a mulher é um elemento meramente "ilustrativo" dentro do quadro social, mas que, mesmo não tendo relevância dentro da sociedade (afinal de contas, direitos femininos como o voto ainda eram impensáveis no fim do século XIX), ela exercia um domínio amplo sob os homens. Além disso, há uma condenação veemente à infidelidade, tanto masculina quanto feminina e uma curiosa teoria a respeito do propósito do ato sexual. Não se contentando a atingir as mulheres da época, o protagonista dirige seus ideais nada indiretos a questão do casamento e mais a frente, à presença dos filhos, apresentando sobre eles uma visão bem particular e repugnante, mas que parte de um fluxo de pensamento que possui certa razão prática. Tudo isso culmina a um acontecimento bárbaro, que acaba por definir a situação perturbada de Pózdnichev naquele momento.
Diante desse relato, é natural que surjam questionamentos a respeito da validade real da leitura d'A Sonata a Kreutzer. Mas como tudo que cerca gênios como Liev Tolstói, o prazer da leitura muitas vezes não está relacionado com a narrativa em si, com a trajetória dos personagens e a presença de um final feliz e pomposo; está, primeiramente, relacionado a teorias próprias, que, se não possuem uma validade eterna, partem de lógicas palpáveis em qualquer tempo e qualquer parte. Esta construção é que torna obras como estas recomendáveis, porque, de uma forma ou de outra, são uma ponte que conduz o leitor a um estado de frequente reflexão durante a leitura.
Aqui, tem-se um Tolstói que se distancia um pouco da beleza e da pompa que definem seus escritos mais famosos, um reflexo do período pós Anna Kariênina (1877), onde o autor passou por uma profunda crise existencial e, especificamente em A Sonata a Kreutzer, o aproximam de seu compatriota Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Aliás, a trajetória de Pózdnichev se assemelha muito ao relato do narrador inominado de Memórias do Subsolo, livro que Dostoiévski lançou em 1864 e que também traz um personagem asqueroso com teorias sombrias que possuem certa validade quando são apresentadas num primeiro momento.
A única marca dessa sublimidade característica da primeira fase da carreira de Tolstói pode ser encontrada no nome da obra. Sonata a Kreutzer é uma sonata para violino e piano criada pelo alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827) e que acabou estabelecendo uma relação com o monólogo de Pózdnichev. Ao misturar duas coisas tão distintas (a beleza sonora produzida pela música clássica e a torpeza de um indivíduo repugnante), Tolstói traz um livro contraditório, que parte da lógica para as polêmicas num piscar de olhos, fornecendo uma obra ampla sem ser longa que somente os gênios literários são capazes de construir.