spoiler visualizarBeatriz1110 07/02/2024
O velho que sonhava com leões...
A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente.
É assim que começa a mais famosa e a mais épica "história de pescador" da literatura contemporânea. Apesar do termo história de pescador se referir a uma história fantasiosa contada por alguns pescadores, Santiago tem provas físicas da aventura que viveu e provavelmente se tornou uma lenda na sua vila depois de fisgar um peixe descomunal.
O velho e o mar é uma história que apesar de curta faz você pensar e viver as mais diversas emoções, ele passa nas suas poucas 126 páginas sobre temas tão profundos como existência, sanidade, abandono ao idoso, solidão, a nossa relação com o alimento, a nossa relação com a natureza, empatia, depressão, autossabotagem, etc...
Durante a leitura eu não consegui deixar de fazer relações com outras obras literárias e cinematográficas, acho que esse é um dos charmes de um clássicos, sua intertextualidade e sua universalidade.
A primeira obra que veio a mente lendo o livro foi "Viagem a Petrópolis" de Clarice Lispector, que conta sobre uma senhora que mora de favor na casa de uma família e um dia eles decidem que não podem ficar mais com ela o que resulta no início da jornada de Mocinha até Petrópolis.
O parágrafo de abertura do conto é assim: "Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava sozinha no mundo", se compararmos com o parágrafo inicial de o velho e o mar: "Ele era um velho que pescava sozinho em seu barco, na Gulf Stream", fica claro como a solidão e a velhice são os temas principais das duas obras, porém uma diferença fundamental sobre os dois protagonistas é que Santiago é persistente e determinado, enquando Mocinha já está muito cansada e vivendo no automático. Os trechos que refletem bem isso até a nível espiritual são "Tudo o que nele existia era velho, com exceção dos olhos que eram da cor do mar, alegres e indomáveis" e "Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos expectantes quase cobertos por um tenue veludo branco".
Durante esse diálogo entre Santiago e o menino:
"-Não concordou o garoto. Mas irá, se eu vir qualquer coisa que ele não possa ver, como uma ave pairando sobre as águas, e disser que é um cardume de dourados.
-Então ele tem a vista tão ruim assim?
-Está quase cego.
- É estranho - disse o velho. - Ele nunca foi à cata das tartarugas. É isso que dá cabo dos olhos.
-Mas você foi à procura das tartarugas durante anos, lá para a Costa do Mosquito, e os seus olhos estão bons.
-É que sou um velho muito estranho".
Eu pensei em o pequeno príncipe, (o essencial é invisível aos olhos), para mim era como se Santiago estivesse falando de uma visão diferente, por ele ser um velho "estranho", que eu entendo como esperançoso ele se arriscava de ir para o largo, porém o patrão do menino que tem pouca esperança não gostava de ir para um lugar que não traria sorte, durante o resto do livro Santiago continua a se referir como velho estranho e a falar como a visão dele "vacila ou oscila" conforme ele perde a esperança.
Em um dos trechos mais doloridos do livro: "Não existia nenhuma rede e o garoto se lembrava muito bem de quando a tinham vendido. Mas esta era uma cena que repetiam todos os dias. Também não havia nenhuma panela de arroz com peixe e o garoto também sabia disso". Eu pensei na situação injusta que a vida, não tem como ignorar a pobreza de Santiago que mora em uma cabana, dorme em uma cama de jornal e é ignorado por todos os outros moradores e inclusive pelos pais do menino, e não parei de imaginar como foi difícil para essa criança ter que ver esse idoso nessas condições e se sentindo impotente como ele expressa durante o livro ter que possuir o entendimento de entrar na mentira para fazer o senhor se sentir melhor.
É perceptivel também que, além de um papel de apoio, empatia e amor para Santiago essa criança tem um papel na história que é de trazer essa constante antítese a figura do velho e ao mesmo tempo, apesar de ele ser o contrario do velho (novo, energético, rápido, forte e espirituoso) ele também funciona como um espelho que reflete tudo que ele já foi, uma imagem muito forte.
Durante várias partes da história o senhor Santiago se mostra muito empático com os animais que aparecem na história como nos trechos:"As aves têm uma vida mais dura do que a nossa, excetuando as aves de rapina e as mais fortes. Por que existiriam aves tão delicadas e tão frágeis, como as andorinhas-do-mar, se o mar pode ser tão violento e cruel?", "A maior parte dos pescadores não sentia a menor compaixão pelo fato de o coração da tartaruga continuar a palpitar durante horas e horas, mesmo depois de ela morta e cortada em pedaços. Mas o velho pensava: Eu também tenho um coração assim e os meus pés e mãos são como os dela". Esse aspecto da humanidade dele foi uma das coisas mais bonitas de ler durante a história, o entendimento dele e a forma como ele sabia que cada um de nós tem um papel no mundo e essa sensação de estar conectado com a natureza isso me lembrou uma frase de Avatar, "toda energia é apenas emprestada e um dia a gente tem que devolver a natureza".
Acho que desde procurando Dori, nenhuma história de peixe me fez eu chorar tanto quanto essa. No momento em que os tubarões começam a aparecer e eu sabia que mais nada podia ser feito eu fiquei sem chão, o irmão de Santiago tinha morrido e ele nem iria conseguir levar o corpo para casa.
Antes da história acabar fiquei pensando durante toda a leitura do livro que aquele senhor ia morrer e eu ficaria arrasada, mal sabia eu que, mais angustiante foi o velho continuar vivo e mesmo depois de três dias de batalha e mais um fracasso, ele iria para casa já pensando em voltar para o mar.