Wanderley 12/04/2023
Viver é lutar
Como falar de heroísmo, no sentido universal, a partir de um personagem que não salva ninguém além de si mesmo e cujo maior feito não é testemunhado por ninguém? De que forma um livro escrito por um autor que viria a cometer suicídio pode deixar uma mensagem de esperança e amor à vida? Essas foram contradições, ou aparentes contradições, que fervilharam em meus pensamentos após ler O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway.
Especialmente quando o heroísmo, o estoicismo e a esperança são tratados de modo tocante como poucas vezes se viu em qualquer obra. Santiago, um velho pescador cubano, sai para o mar com o espírito abatido por quase três meses sem conseguir fisgar um peixe grande. Mas ele não desiste. Sozinho, mantém firme o compromisso íntimo consigo mesmo e com o seu ofício. Pescar é sua vida, sua missão. Nesse dia, porém, a sorte parece virar e Santiago consegue fisgar um descomunal espadarte. A luta e a técnica, a espera, a paciência, o jogo entre presa e homem se desenrola enquanto o pequeno barco se distancia da costa. De algum modo, há respeito entre pescador e animal. Existem também perigos: a fome, a exaustão, a idade, as feridas nas mãos e os tubarões. E Santiago não entrega os pontos. Nem ele nem o mar. Sem ninguém com quem falar, Santiago conversa consigo mesmo, às vezes em voz alta. A certa altura diz para si: "Um homem pode ser destruído, mas não derrotado". É o tipo de esperança capaz de resistir a tudo. O pescador tem um compromisso com o estar no mundo e a ele se aferra com dignidade heroica. Homem simples, de formação limitada, mas sábio em sua arte, o velho sabe que é parte de um todo imenso, cuja parcela que ele representa tem sim importância.
Num mundo onde todos se expõem nas redes sociais com notável imprudência, onde a busca pelo reconhecimento supera noções cuidado e humildade, onde a intolerância se disfarça de preocupação humanista, onde todos querem mudar todos (mas nunca a si mesmos), a leitura de O velho e o mar ganha relevância de um alerta: as lutas mais difíceis, as fundamentais, são solitárias e não rendem glórias e aplausos, apenas silêncio. São internas. Hemingway ganhou o Nobel de Literatura com um livro simples e curto, de impactante beleza em sua sintaxe direta e desprovida de floreios, escrito com dignidade, como missão e arte, como um velho pescador no mar.