spoiler visualizara voz que lê 16/01/2024
Quebrando as duas primeiras regras
Antes de Clube da Luta, Chuck Palahniuk teve um livro rejeitado chamado "Monstros Invisíveis", que depois viria a ser o seu terceiro livro publicado (e um dos meus favoritos de Palahniuk, isso se não for o meu favorito.) Na época, os editores não entenderam a vibe bizarra de uma história tão fora da caixa, tão visceral. Então veio Clube da Luta, que foi um fracasso na época de sua publicação, mas depois foi resgatado por causa da adaptação de 1999, dirigida por David Fincher, e o resto é história.
Mas antes de tudo isso, Clube da Luta veio de um conto em que o personagem Tyler Durden aparecia pela primeira vez, numa experimentação de narrativa que Palahniuk fez durante horas enfadonhas em seu trabalho. Ele também conta que a inspiração para o livro foi o episódio de uma briga em que ele se envolveu (e perdeu feio), e quando foi trabalhar com o rosto todo marcado, as pessoas simplesmente pareciam nem perceber, como se você tivesse um certo poder em seu tempo livre e fosse uma pessoa diferente. É algo que está ali, gritante, mas as pessoas fingem não ver.
Palahniuk pega histórias variadas daquelas contadas entre amigos, uns anônimos do Oregon, e também coloca no caldeirão que é Clube da Luta. Toda a coisa do projecionista colocando frames pornográficos em filmes familiares, comidas em restaurantes que são sabotadas das piores maneiras. Ele também é formado em jornalismo e sempre faz um bom trabalho de pesquisa sobre coisas muito específicas, sobre como fazer o melhor sabão, como fazer bombas caseiras etc, e ainda coloca isso tudo no livro. Ideias perigosas. Mas é esse o grande ponto de clube da luta. Fala sobre ideias que podem parecer libertadoras para uma geração desencantada com suas próprias vidas, mas que se mostram perigosas.
Assim é a literatura de Palahniuk, que escreve o que o próprio chama de literatura subversiva, não apenas por essas mensagens que ficam entre poderosas e perigosas, mas também por uma narrativa que busca fugir de todo aquele academicismo que determina o que é ou não boa literatura. Seus livros costumam ser narrados numa linguagem que se aproxima da informalidade de uma linguagem mais oral, como se os narradores estivessem contando suas histórias durante uma conversa, mas repletos de elementos que dão um ritmo todo próprio ao texto. Os capítulos costumam ser curtos, começando já no meio da ação, muitas vezes sem perder tempo explicando demais como o protagonista chegou ali, e se interrompendo do nada, antes de perder o fôlego. Há todo o humor ácido, cheio de ironia e críticas sociais, personagens palestrando seus conhecimentos úteis e inúteis, frases que se repetem como em refrões de música. Dificilmente você não guarda algumas frases de efeito. Há quem diga que há um quê de autoajuda nessa estrutura e a maneira como as mensagens surgem, mas vejo muito mais como uma sátira e às vezes até uma paródia disso, como se fosse uma autoajuda saída do inferno ou do lixo da vida de personagens quebrados e autodestrutivos, ainda que as mensagens tenham lá o seu poder.
No prefácio, Palahniuk fala sobre como o gênero punk na música influenciou bastante o seu estilo, pela rapidez com que o livro foi escrito e com que é lido. Isso também explica uma certa musicalidade no seu ritmo frenético. Palahniuk é de uma geração de insegurança em que não sabia se ele e seus amigos viveriam muito, por causa da AIDS. Então havia um senso de urgência que se materializou em seu texto e assim continou ao longo de todo o seu trabalho.
A história é bem conhecida. Temos o narrador sem nome, insatisfeito com sua vida, que sofre de insônia, passa a frequentar grupos de apoio de doenças que ele não tem. Lá ele conhece Marla, que também finge e estraga tudo. Então ele conhece Tyler, e eles fundam um novo tipo de terapia: o clube da luta. O que começa como algo simples se tranforma em algo bem perigoso, com Tyler se transformando uma espécie de lenda messiânica com intenções que fogem do controle do protagonista.
No livro, Tyler, ou quem os outros pensam ser Tyler Durden é sufocado por aquilo que ele mesmo criou. É até mesmo expulso de um clube da luta quando ele afirma que tudo aquilo perdeu a graça e o sentido. Todo o projeto se descentraliza e sai de seu controle. Isso acontece quando o narrador já conhece a verdade sobre Tyler e precisa detê-lo. Ele se torna refém da própria criação, incapaz de fugir do seu destino como um líder que ele não quer mais ser.
No livro, Marla parece mais por dentro do que acontece, acompanha mais de perto os macacos espaciais (os discípulos de Tyler) e as coisas que eles fazem, mas ainda assim não parece compreender por completo do que se trata tudo isso e a natureza da confusão mental do protagonista. Ela o ama, mas não entende por que ele age como age com ela.
Como eu disse ao comentar sobre o filme, o livro tem uma ordem diferente de alguns acontecimentos, de modo que nem tudo o que funciona de um jeito no livro funcionaria no filme e vice-versa, o que é bom, pois são experiências complementares que surpreendem cada um à sua maneira. Até o final do livro é diferente e dá brecha a continuações, o que acabou acontecendo em forma de quadrinhos, duas vezes, enquanto o final do filme encerra a história em tons um pouco mais apocalípticos.
Curiosamente: tanto livro quanto filme tiveram suas mensagens deturpadas por pessoas que resolveram fundar clubes da luta clandestinos e ainda abraçar outros atos de violência ou de vandalismo. Agindo como os personagens do livro, embora isso não seja original dele, um garçom de verdade chegou a confessar a Palahniuk ter servido seu sêmen CINCO VEZES na comida de Margareth Thatcher!
Também é curioso que uma obra de contracultura idealizada por um homossexual (Palahniuk) foi abraçada como uma ode à masculinidade por parte de homens com atitudes de brucutu que não entenderam nada, enquanto o mesmo texto é repleto de sugestões homoeróticas. Esse é o poder de Clube da Luta.
A Edição de Colecionador lançada em 2016, que possui o roteiro do filme traduzido e outros extras tem um aspecto estilizado de material artesanal e improvisado, com o título pichado na capa. Isso combina demais com o conceito de Faça Você Mesmo (Do It Yourself) do punk e mesmo desta história e seus personagens. Ao mesmo tempo, é inegável como parece contraditória por não ter sido exatamente barata quando a comprei e ter o seu valor de material "gourmetizado". Ao mesmo tempo em que isso tira o propósito subversivo do material (texto) e se torna uma bela demonstração da comercialização da arte, tornando-o um produto ou objeto no capitalismo, ainda funciona como uma dessas ironias da realidade que cabem muito bem às críticas apresentadas por Palahniuk a essa sociedade de consumo e ainda perpetua a obra (ainda estamos falando sobre o clube da luta mesmo quase 30 anos depois.) É como Tyler roubando a gordura da lipo de mulheres de classe média e revendendo de volta essa mesma gordura em forma de sabonete. O capitalismo permite criticar a si mesmo, desde que lucre com isso. É um círculo vicioso que fica difícil de se livrar, mas ao menos temos um livro que nos conscientiza disso.
Eu gosto bastante dessa edição de colecionador, acho interessante e boa de ter, além de demonstrar o prestígio que essa obra tem para mim. Mas a edição mais básica do livro, também pela Leya, já está de bom tamanho se você quer apenas ler o livro. É até mais prático de manusear e condiz mais com a natureza do texto. Vai do seu gosto.