lucasfrk 10/05/2024
Clarissa ? comentário
?Clarissa segue num encantamento. Sua sombra se espicha na calçada. Como a vida é boa! E como seria mil vezes melhor se não houvesse esta necessidade (necessidade não: obrigação) de ir para o colégio, de ficar horas e horas curvada sobre a classe, rabiscando números, escrevendo frases e palavras, aprendendo onde fica o cabo da Boa Esperança, quem foi Tomé de Sousa, em quantas partes se divide o corpo humano, como é que se acha a área de um triângulo... Os olhos de Clarissa dançam de cá para lá examinando tudo...? (p. 12)
Clarissa, escrito em 1933, é o segunda livro de Erico Verissimo e primeiro romance do escritor. O livro trata das (auto)descobertas da menina Clarissa Albuquerque, de treze anos, filha de fazendeiros do interior do estado do Rio Grande do Sul, que passa a morar junto aos tios, em sua pensão em Porto Alegre, a fim de concluir os estudos. Clarissa é uma jovem normalista que encara a escola como uma obrigação, vivendo dentro duma pensão que é, em certo sentido, uma espécie de microcosmo do Brasil, ou mesmo do Rio Grande. O olhar que é incutido no leitor é o dessa menina, que enxerga um mundo fascinante, mas, ao mesmo tempo, uma realidade estranha e cruel. O livro não tem grandes acontecimentos ou reviravoltas, mas apresenta agudos conflitos sociais e tensões raciais. As personagens são caracterizadas de acordo com suas funções sociais (Amaro é bancário; o tio de Clarissa é desempregado; e a própria, é estudante), ao passo que personagens militares e/ou estancieiros recebem uma representação mais caricata. Há, todavia, caracterizações preconceituosas no livro, principalmente no que tange a personagens de classe média-baixa ? é notório o racismo embutido tanto na ingenuidade um tanto chocante da personagem, como na onisciência do narrador (perceba: narrador, não escritor). O livro é bastante ambíguo e, apesar de apresentar passagens problemáticas, rende alguns momentos ?líricos?, além de evidenciar Erico Verissimo como um bom observante das configurações socioeconômicas de Porto Alegre.
?Era numa casa grande. O arvoredo que a cercava amanhecia sempre cheio de cantos de pássaros. O mundo não terminava ali no fim daquela rua quieta, que tinha um cego que tocava concertina, um cachorro sem dono que se refestelava ao sol, um português que pelas tardinhas se sentava à frente de sua casa e desejava boa tarde a toda a gente. Não. O mundo ia além. Além do horizonte havia mais terras, e campos, e montanhas, e cidades, e rios e mares sem fim. Dava na gente vontade de correr mundo, andar nos trens que atravessam as terras, nos vapores que cortam os mares. Andar... Nos olhos do menino havia uma saudade impossível, a saudade de uma terra nunca vista. Um dia ? quem sabe? ?, um dia um vento bom ou mau passa e leva a gente. Um dia...? (p. 24)
?Um dia veio um vento ? bom ou mau? ? e levou para longe o menino que queria viajar. Ficou para trás a cidade pequenina com todas as suas coisas bonitas e queridas.? (p. 27-28)