Jeff_Rodrigo 19/06/2024
Leia e devore com a fúria dos famintos
É engraçado perceber como a figura de Josué de Castro sempre me rondou e eu, não só incapaz de entender as referências cotidianas como também materialmente impossibilitado de conhecer o seu legado, demorei a perceber a sua grandeza.
A primeira vez que ouvi o seu nome foi na música "Da Lama ao Caos", do Nação Zumbi, em que dizia:
"Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça
Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça
Peguei um balaio, fui na feira roubar tomate e cebola
Ia passando uma véia, pegou a minha cenoura
'Aê minha véia, deixa a cenoura aqui
Com a barriga vazia não consigo dormir'
E com o bucho mais cheio comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar
Que eu me organizando posso desorganizar"
Ali, numa mistura de um diálogo curto com reflexão, sob um som estridente (mesclado e ousado), vi um pouco do fundamento da sua obra: a indignação diante da pior condição social existente, a fome. Mas naquele momento, confesso, não fui curioso o suficiente para buscar conhecer quem era essa figura.
Posteriormente, já na faculdade, também fui negligente. Mesmo tendo contato com partes dos seus textos, não tive a capacidade de abrir espaço para ler uma das suas mais importantes obras, "Geografia da Fome". E que obra!
Nesse livro, escrito em 1946 e com mais de 15 edições posteriores, temos um compilado minucioso e bem detalhado das características endêmicas da fome ao longo do território brasileiro. Usando de vários conceitos médicos, de referências históricas e trabalhos sociológicos, Castro vai construindo uma argumentação lógica sobre a relação entre as crises alimentícias e as características físicas e humanas que compõem os diferentes territórios do Brasil. Assim, neste livro nos é apresentado não só a definição científica das diferentes doenças causadas pela carência de nutrientes fundamentais à vida, com suas características e consequências, mas também como cada território se tornou propenso às crises alimentares.
Partindo da Região Norte, Castro nos mostra os perigos da falta de organização centralizada da gestão econômica e política do território. O destaque é feito para o flagelo enfrentado pela leva de população que migrou para essa região durante o ciclo da borracha, no final do século XIX. De como essa opção econômica, praticamente a única nesse território durante todo esse período, resultou em um enorme perigo de saúde pública, caracterizado pelo alastramento do raquitismo, anemia, pelagra, xeroftalmia, beribéri, escorbuto e toda uma gama de doenças que deformam o físico e afetam a psique do indivíduo. Notório, também, é como ele faz a distinção entre os hábitos daqueles que já estavam acostumados às condições locais (índios, caboclos, ribeirinhos e antigos colonos) com aqueles que se aventuraram por essas terras sem planejamento algum.
Na Região Nordeste, por sua vez, o autor nos apresenta um estado calamitoso, provocado pelo legado histórico da ocupação. A monocultura de cana, o uso de mão de obra escrava e a concentração de terras nas regiões efetivamente produtoras, resultaram num quadro vicioso de epidemias de fome ao longo desse território. A má utilização dos recursos disponíveis, com degradação do solo, destruição do bioma, falta de pesquisa e incentivo da utilização racional da fauna e flora restante, resultaram numa população que vive arcaicamente, quase à beira do feudalismo, sujeita a toda sorte de doenças causadas pela carência de nutrientes (doenças físicas e mentais). Nesse ponto, o autor destaca a diferença com a população da região norte: ainda que haja uma carência de vitaminas e minerais importantes, essa é compensada pela alta ingestão de proteínas, fato resultante da cultura herdada dos colonizadores europeus. O processo de colonização do nordeste foi tão violento, aliás, que simplesmente ignorou e destruiu os saberes e técnicas de sobrevivência que as populações indígenas daquela região utilizavam para sobreviver.
Por fim, descrevendo a região sul (sul e sudeste, na classificação atual), Castro aborda a carência de nutrientes e minerais importantes entre as populações locais, como o iodo e, claro, as suas terríveis consequências. Também faz uma boa referência ao fato da discrepância e descompasso entre a produção industrial e a agrícola, identificando e alertando como a má distribuição de renda nos centros urbanos é responsável por vários problemas de saúde e conturbações sociais.
O autor finaliza o livro tocando o dedo na ferida. Denuncia que os males enfrentados pela fome no Brasil são frutos de uma opção política, gerada e organizada por uma classe social egoísta, que prefere se aproveitar rápida e vorazmente de todos os recursos físicos e humanos em um curto espaço de tempo, ao invés de pensar em um projeto integrador, racional e justo para todos os seus compatriotas. Evidencia que as condições morfoclimáticas locais pouco influenciam para a condição de perigo à que o grosso da população brasileira é sujeita. Cita como a monocultura e a concentração de terras no Brasil são uma ameaça à saúde pública e à segurança nacional, capaz de provocar tensões e problemas sociais de toda ordem.
Não é à toa que esse livro, junto com demais trabalhos feitos por Josué de Castro, foi tão estudado, reproduzido e tenha servido de inspiração para outros trabalhos semelhantes ao redor do mundo. É um documento que acendeu alertas, provocou debates científicos e colocou o Brasil no mapa da fome mundial.
Não é à toa, também, que Josué de Castro foi perseguido pela Ditadura Militar de 1964. Esse livro tocou em temas sensíveis da estrutura econômica e social brasileira. Temas que, infelizmente, ainda são pertinentes. Portanto, não faça como os malditos milicos, negligenciando, ignorando e escondendo essa obra que continua sendo atual. Leia e devore ela com a fúria dos famintos.