Leonardo 12/09/2013
Um livro sobre desejos reprimidos
Com esse livro, completei a leitura de todos os romances de Raduan Nassar. Além de Lavoura Arcaica, seu outro romance é Um copo de cólera, resenhado aqui. E só. Escreveu alguns contos, publicados na obra Menina a caminho. Aposentou-se ainda em 1984 para dedicar-se à sua fazenda, no interior de São Paulo.
Apesar da obra tão curta, Nassar é admirado pela crítica e seus dois romances viraram filmes também bastante elogiados. Um copo de cólera é uma pequena pérola. Um livro curto, mas arrebatador, que diz muito. Encontrei Lavoura Arcaica no sebo e nem titubeei. Finda a leitura, fica evidente o talento de Raduan Nassar. Lavoura Arcaica conta uma história simples: André foi criado no seio de uma família simples e de valores bem tradicionais, na zona rural. Seu pai é uma figura sempre presente, com seus sermões sobre o tempo e sobre os valores religiosos. André não suporta aquela vida e foge para a cidade. Seu irmão mais velho, Pedro, encontra-o numa velha pensão e leva-o de volta para casa. A história deste retorno é entrecortada com a conversa entre André e Pedro, quando o irmão mais novo conta os motivos que o levaram a fugir de casa.
A maneira como Raduan Nassar conta, entretanto, não é usual. Ele explora muito os sentidos, a intimidade de André, expressando-se sempre por meio de muitas metáforas. O livro todo passa a impressão de ser poesia travestida de prosa, a começar pela primeira cena, que descreve o jovem André se masturbando no chão do seu quarto de pensão.
Os capítulos, apesar de curtos, não têm parágrafos. É como se o protagonista vomitasse tudo, numa torrente inquietante de pensamento. Se, de um lado, a narrativa de André é confusa, não são menos misteriosos (e belos!) os sermões de seu pai sobre o valor do tempo.
Vejam abaixo uma coleção de ais, bem ao estilo bíblico, dirigidos àqueles que não têm paciência, que desafiam a capacidade transformadora do tempo:
“Não se profana impunemente ao tempo a substância que só ele pode empregar nas transformações, não lança contra ele o desafio quem não receba de volta o golpe implacável do seu castigo; ai daquele que brinca com fogo: terá as mãos cheias de cinza; ai daquele que se deixa arrastar pelo calor de tanta chama: terá a insônia como estigma; ai daquele que deita as costas nas achas desta lenha escusa: há de purgar todos os dias; ai daquele que cair e nessa queda se largar: há de arder em carne viva; ai daquele que queima a garganta com tanto grito: será escutado por seus gemidos; ai daquele que se antecipa no processo das mudanças: terá as mãos cheias de sangue; ai daquele, mais lascivo, que tudo quer ver e sentir de um modo intenso: terá as mãos cheias de gesso, ou pó de osso, de um branco frio, ou quem sabe sepulcral, mas sempre a negação de tanta intensidade e tantas cores: acaba por nada ver, de tanto que quer ver; acaba por nada sentir, de tanto que quer sentir; acaba só por expiar, de tanto que quer viver; cuidem-se os apaixonados, afastando dos olhos a poeira ruiva que lhes turva a vista, arrancando dos ouvidos os escaravelhos que provocam turbilhões confusos, expurgando do humor das glândulas o visgo peçonhento e maldito; erguer uma cerca ou guardar simplesmente o corpo, são esses os artifícios que devemos usar para impedir que as trevas de um lado invadam e contaminem a luz do outro, afinal, que força tem o redemoinho que varre o chão e rodopia doidamente e ronda a casa feito fantasma se não expomos nossos olhos à sua poeira?”
E o pai continua seu sermão, que, como é possível perceber, concentra-se muito na pureza e na vigilância em relação à carne. Isso porque André é um sujeito de sexualidade atormentada, nutrindo inclusive um amor incestuoso por sua irmã.
Ler Lavoura Arcaica requer atenção completa, ou você se perde e não desfruta da prosa tão rica. Não é, portanto, um livro fácil. Mas a recompensa é grande.
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