Thalia.Mutuana 27/02/2022
Em Lavoura Arcaica, obra escrita em 1975 durante o período em que a Ditadura Militar assolava o país, somos envolvidos por uma narrativa que, tomada por uma série de alegorias e referencialidades, remete-nos a uma resposta indireta à “impossibilidade de uma expressão artística sem barreiras censórias” (SUSSEKIND, 1985, p.11). André, o narrador do livro em questão, é o filho epilético de uma família numerosa e regida por valores tradicionalistas e religiosos que, transtornado pela paixão incestuosa por sua irmã Ana, decide fugir do seio familiar.
André foge não só pelo anseio proibido que sente por sua irmã, como também pela asfixia ocasionada pelas relações arcaicas estabelecidas em seu núcleo familiar. Quando escapa para um pensionato em uma outra cidade interiorana, o personagem balança os laços já desequilibrados de sua família que, lamentando sua falta, pedem a Pedro, seu irmão, para trazê-lo de volta à casa da lavoura. O exílio voluntário de André é apresentado no livro em duas partes: “A Partida”, onde são apresentados os motivos que levaram à fuga, e o “O Retorno”, onde são expostos os acontecimentos que sucederam à falsa paz que o retorno do personagem trouxe.
Nota-se no exílio de André uma alegoria à parábola bíblica do filho pródigo, aquele que abandona a sua casa, usufrui dos prazeres mundo afora e que, mesmo assim, é recebido de braços abertos por seu pai, como o próprio André ao ser recepcionado com uma festa. Além disso, muitas são as referências feitas a outros ensinamentos bíblicos, visto que o pai do personagem não poupa sermões para o ensinamento pudico e controlado de seus filhos, objetivando sempre manter a ordem patriarcal da família, onde todos os membros possuem uma determinada função já ao nascerem. Sentindo-se sufocado pelo labor exigido por seu pai — controle esse semelhante ao orquestrado pelo governo durante os anos de chumbo com a utilização de censura e de outras estratégias —, o personagem chega a indagar com raiva a seu irmão: “Pedro, não vê que os sermões do pai são inconsistentes?".
É possível notar tamanho sentimento de asfixiamento nos sentimentos do personagem, seja em relação à família de forma geral ou à paixão por sua irmã, pela própria estrutura textual do livro e pelo cuidado evidente que o autor toma com as escolhas das palavras. Mesmo que apresentado por capítulos curtos, eles são formados por poucos parágrafos de períodos muito longos os quais são separados, na maioria das vezes, somente por vírgulas, não possibilitando uma quebra do fluxo contínuo de pensamento do narrador, e transmitindo a sensação de sufocamento e imersão durante a leitura.
Observa-se também, na obra de Raduan Nassar, o "aniquilamento da ação narrativa” (SUSSEKIND, 1985, p. 11), visto que o livro não segue uma narrativa linear entre seus capítulos, misturando passado e presente, embora isso não impossibilite a compreensão do texto. As escolhas estilísticas de Nassar, como o tom lírico que o texto assume (até mesmo ao descrever uma cabra!), somadas aos contantes fluxos de pensamentos confusos e intrincados de André, indefinem o que realmente aconteceu e potencializam a relação do não-dito e do que verdadeiramente foi vivido pelos personagens de Lavoura Arcaica.
Referências
NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. Editora Companhia das Letras, 1989.
SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1985.