Cardoso 26/09/2024
Mixed bag
Numa copilação de contos anteriormente publicados em revistas entre os anos de 1968 e 1985, quando foi, também, lançado o livro, Stephen King mostra resultados muito variados, quase sempre não exatamente bons. Apesar de voz narrativa charmosa, seus vícios e fraqueza se esbanjam aqui: desfila sua prolixidade, sua dificuldade em unir ou separar, quando necessário, voz do narrador com a do personagem, seu uso de violência gráfica pueril, sua canastrice, certos preconceitos e, por fim e mais decepcionantemente, falta de ritmo em criar o ambiente aterrorizante em muitos dos textos, fazendo os horrores narrados soarem simplesmente ridículos.
O primeiro problema já se inicia em ?O macaco? (que receberá adaptação dirigida por Oz Perkins, que lançou recentemente o interessante ?Longlegs?), cujo terror se costura pela aparição de um macaquinho de brinquedo, supostamente inofensivo, mas que esteve coincidentemente próximo demais de diversas situações que vão perturbando o narrador. Os pensamentos do protagonista, o tradicional pai de família das histórias de King, interrompem a narrativa da mesma maneira que invadem sua mente aterrorizada, e esse cruzamento autor/personagem tem o objetivo de criar a tensão necessária até o momento em que os fatos realmente começam a se desenrolar: objetivo não cumprido. O ritmo é constantemente atrapalhado porque, na maioria das vezes, esse ?fluxo de ideias? não é eficaz em nos amedrontar, e, conforme o sobrenatural começa a se manifestar, senti-me simplesmente olhando algum amigo com óculos de realidade virtual se divertindo sozinho num jogo, enquanto seus movimentos e reações parecem tolas e risíveis para mim. Quando um dos filhos da família começa a perceber o que está acontecendo, entretanto, tudo desanda de vez, com frases completamente inverosímeis sendo ditas sobre coisas que não mais nos importa. Seu desfecho, que ganha proporções épicas, soa mais e mais risível.
Igualmente, em ?A excursão?, temos a tradicional família americana, dessa vez envolta numa trama de ficção científica, em que King não utiliza bem o artifício da voz narradora ao ?empresta-la? ao pai de família, que conta uma longuíssima história, de forma entendiante, a seus dois filhos pequenos, que deveriam ser acalmados num espaço curto de tempo. Tentando resolver essa situação fictícia com a situação real de nos relatar toda essa situação que nos leva a um fim fortemente previsível, somos conduzidos também por uma excursão onde preferíamos estar dormindo ao longo da viagem.
Em ?A balsa?, somos apresentados aos quatro jovens universitários menos carismáticos imagináveis, enquanto o autor se diverte em maltratar a típica gostosa ?🤬 #$%!& ? de filme de terror que não transa com o personagem com quem ele mais se afeiçoou, o típico nerd tímido que sofre na mão de um típico ?valentão?, que, ao menos aqui, é seu amigo. Ou algo assim. A cadência se perde no meio desses pensamentos intrusivos do narrador, que, por fim, só quer destroçar corpos num moedor de carne em forma de mancha de óleo.
Em ?Um mundo de praia?, ele se furta de mistérios e, tentando-se poético, expõe muito mais do que deveria e suspende qualquer suspense possível. A construção de universo é básica, e sobra pouco pra se apreciar aqui. Pouco, mas não nada, diferente dos dois poemas perdidos no meio do livro, ?Paranoico: um canto?, a primeira emulação de Poe da obra, e ?Para Owen?, que ficam abaixo da mediocridade e não são, definitivamente, dignos de nota.
Em ?Aqui há tigres?, King experimenta o microconto, sem grande destaque; ?Caim rebelado? parece inacabado, e, novamente, se furta em se satisfazer com sanguinolência; ?A imagem do ceifeiro? é elegante, soando um cruzamento de Poe com Wilde.
Existem dois contos aqui que são claros tiros bem atirados que, entretanto, não atingem o alvo: ?O atalho da Sra. Todd? e ?O processador de palavras dos deuses?, talvez ?Nona? (basicamente um sonho incel hippie). O primeiro conta com uma voz narrativa exuberante, de um calmo idoso relembrando uma paixão platônica por uma excêntrica moça numa cidade de interior; o relato é belo e singelo, mas não se furta de perder-se nas descrições gráficas e em ir longe demais num enredo que começa a sair do terro da low fantasy para destinos não tão bons assim (li por aí que essa história participa do universo de ?A torre negra?, mas isso pouco me importa; seria melhor que não pertencesse e fosse bem escrito). O segundo começa de maneira melancólica e tocante, parte para um bom mistério de ficção científica fantasiosa e se estraga, novamente, pelo prazer que o autor tem em desprezar mulheres gordas e tratar seus personagens masculinos patéticos como heróis dignos de piedade, quando não são nem mesmo dignos de pena.
Essa questão dele com as mulheres, aliás, se reflete até nos bons contos, como em ?A festa de casamento?, que, dessa vez, se justifica plenamente através de um personagem dotado de preconceitos, inclusive raciais, que narra uma situação inusitada com charme e bom humor. É, de longe, a história mais engraçada da coletânea e um prato cheio para quem gosta de jazz e hard boiled. Em ?Vovó?, muito bem narrado pela perspectiva de um garoto sozinho com sua doente e peculiar avó, que apresenta muitas características assustadoras - uma delas, a obesidade -, de novo é possível se esgueirar no ponto de vista de uma criança diante de uma pessoa doente e já com demência, e como a sua figura misteriosa se junta a suas características físicas e, realmente, assusta qualquer mente infantil. Na segunda história d??O leiteiro?, há, novamente esgueirado por um personagem, um white trash que adoraria matar a mulher gorda e flácida; essa dupla de contos, entretanto, é bem divertida e nos envolve com personagens de moral duvidosa.
Tudo isso pode parecer eventual, mas o conto final, ?O Braço de Mar?, sobre uma anciã habitante de uma pequena ilha que se recusa a conhecer ?o continente?, e que relembra suas memórias em seus dias finais num uso (surpreendentemente) bom de fluxo de consciência (!), descreve sua protagonista, talvez a personagem com mais boa alma da história, com uma senhora... magra, assim como as outras boas moças e mulheres admiráveis dos contos. Independente disso, é notável a habilidade de se criar a cidadezinha em seus detalhes, a amistosa e unida vizinha e suas diversas figuras. Mesmo certa pieguice, próxima ao final, não interrompe a beleza. É, junto com ?A balada do projétil flexível?, grande surpresa, encerramento obra. Neste, uma trama envolvendo o mundo literário, King parte de um estilo que transita entre Poe e ?A volta do parafuso? para exibir voz própria conforme a trama avança numa espiral de loucura; consigo, entretanto, imaginar a mesma história sendo muito melhor contada utilizando-se um viés mais próximo da paranoia linguística de Burroughs, mas aí, talvez, seja querer demais. Igualmente satisfatórios são ?Sobrevivente?, ?O caminhão do tio Otto? e ?O homem que não apertava mãos?.
O grande carro chefe, entretanto, é ?O nevoeiro?. A família, mais uma vez a típica família tradicional americana, se assemelha muito à família Torrence de ?O Iluminado?, caso Jack não tivesse pirado e tentado matar esposa e filho e, pelo contrário, tivesse feito terapia, tratado suas questões e abandonado o álcool de vez; a pressão do isolamento e a impossibilidade de sair também continuam aqui, e a construção do ambiente, mais do que em qualquer outra das histórias deste livro, também segue, graças a Deus, a linha de sua obra de ?77. A série de figuras que surgem na história tem desenvolvimentos surpreendentes e, em vários momentos, nos pomos em seus lugares, questionamos nossos limites e compreendemos o drama humano ocorrido ali. O terror lovecraftiano da história parece seguir a linha de ?The Thing?, de Carpenter, ao também partir pra ação, e boa ação. A subtrama de fanatismo religioso que vai se formando tensiona ainda mais uma situação já terrível, e aqui o ritmo é dar palpitações.
Por fim, fica a lição: com um material tão diverso (no mau sentido), não abra seu livro com seu melhor conto.