Marc 01/07/2021
Entristece quando lemos comentários sobre um livro desse porte apontando uma leitura difícil, cansativa e monótona. Dentre os inúmeros males que livros como Harry Potter fazem está, sem dúvida, o de criar leitores impacientes, incapazes de ler mais de 5 ou 10 páginas sem que algo emocionante aconteça, para fisgar e manter a atenção. Ou ainda, como dizia Nietzsche, falta a nós a capacidade de ruminar e suspender a vida para segurar um pensamento e esmiuçá-lo. Mas não quero fazer comentários sobre o tipo de leitores que o livro tem recebido ultimamente, não vale a pena.
O termo que Ishmael usa para descrever a baleia poderia muito bem ser aplicado ao próprio livro “Moby Dick”. A rigor, vendo tantas interpretações (li a edição da 34, com alguns textos interessantes, mas que demonstram essa impossibilidade de se digerir o livro), tantos estudos e comentários filosóficos, não se pode deixar de notar que raramente há concordância entre eles. Parece que o livro é inabordável, assim como as próprias baleias. Do que ele fala? Pergunte para 20 pessoas e provavelmente vai obter 20 respostas diferentes. Entender a história é fácil, todos vão dizer que se trata do relato da obsessão do capitão Ahab pela baleia Moby Dick e da longa viagem até que o seu navio (Pequod) a encontre para a batalha final entre os dois. Simples. Mas esse não é o tema do livro, é apenas a desculpa que Melville usa para falar de outras coisas mais importantes.
Melville tinha verdadeira admiração por Shakespeare. São muitas as passagens em que ele faz referência a diversos textos do dramaturgo inglês. A visão de mundo, a maneira como os personagens se relacionam, Ahab, muita coisa nessa obra é devedora de Shakespeare, como alguns já disseram. A meu ver, isso torna ainda mais saborosa a leitura, mesmo nos trechos considerados “monótonos”, pois é preciso compreender que ali está se construindo o significado de todo o livro, que vai culminar na tragédia. Isso tudo é verdadeiro, mas ainda não explica o livro.
Só passei a me sentir minimamente confortável (porque uma leitura que não conseguimos decifrar nos incomoda) quando me lembrei de uma outra obra, posterior, mas igualmente difícil de ser abordada. Me refiro a “Memórias do Subsolo”, mais especificamente à explicação dos motivos pelos quais o socialismo e a ciência falharão sempre ao lidar com a humanidade: porque ela não é uma tecla de piano. Quer dizer, é possível ensinar algo às pessoas, convencê-las de que agir de determinado modo é sempre mais correto, dar justificativas, etc; mas é impossível garantir que, mesmo de posse de todas as informações, relatórios, certezas filosóficas e científicas, não haverá simplesmente a vontade de modificar o padrão e agir de forma diferente. Pode parecer simplista afirmar isso sobre Ahab, um personagem tão complexo, mas só assim pude voltar a dormir tranquilamente. Mesmo alertado sobre o grande risco, sobre seu destino inevitável, caso não modificasse a rota, ele insiste em enfrentar a baleia.
Uma baleia diferente de todas as outras, maior, mais inteligente, com um “apetite” pela destruição, em seu ambiente próprio, ao mesmo tempo em que tem sua mobilidade reduzida e sentindo o peso dos anos; tudo é desfavorável a Ahab, mas ele não desiste, não pensa em desistir. É tocante ver, já perto do fim do livro, o quanto ele se humaniza, falando da esposa e filho, tentando estabelecer laços com Starbuck, seu imediato, olhando a obra de uma vida a partir de uma outra perspectiva: a de quem já está praticamente fora dela, conseguindo ter um olhar sobre o todo, livre das emoções e das expectativas sobre as consequências de suas ações e o futuro. Creio que, de tudo, isso é o que mais nos deixa desconfortáveis, porque ele sabe qual será seu destino, sabe que não vai sair vivo daquele confronto, mas persiste. Dizer que se trata de um monomaníaco me parece tão reducionista... Ahab tem a coragem de dedicar sua vida a algo maior, algo que será sua ruína, mas ele precisa fazer. E isso justifica, pelo menos a seus olhos, qualquer decisão em sua vida. Se fosse apenas um maníaco, Ahab esperaria obter sucesso, mas ele SABE que não tem chance alguma.
Se poderia dizer que eu tento desvincular a imagem de Ahab do louco obsessivo enquanto o defino dessa mesma forma usando outras palavras, mas não. A força dele é não ser louco, pois se fosse esse o caso, em algum momento seu projeto desmoronaria antes de encontrar a baleia. Projetos baseados na loucura tendem a ruir em algum momento, geralmente quando outros homens começam a questionar sobre sua racionalidade; isso acontece, mas Ahab continua. E todos os outros começaram a questionar a validade dessa busca, fazendo o clima de mau agouro perpassar muitas páginas, até o encontro com Moby Dick. Mas não há loucura aqui. Outros não são capazes de compreender a amplitude do que tem diante de si, da força de vontade de Ahab, da sua imensa liberdade de escolher a morte a viver mediocremente, com medo e sentindo pena de si, por não ter uma perna, por carregar inúmeras cicatrizes. Melville alcançou uma verdade universal e mesmo que não seja possível estabelecer uma definição satisfatória a esse respeito, nós sentimos que ela está presente. Talvez seja terrível demais para ser formulada de outra maneira, não sei, mas o livro se tornou um dos pilares de nossa cultura, um verdadeiro mito (no sentido antropológico).
Pode ser que essa capacidade de não se deixar rotular seja porque tentamos encontrar veracidade na descrição de Ishmael e ela entre em contradição com a mensagem. O significado e o significante, se podemos dizer desse jeito, talvez não estejam em acordo. Mas isso é apenas uma hipótese, claro. Me refiro ao fato do narrador tão inteligente e letrado, capaz de fazer longas considerações sobre a natureza humana, sobre as baleias e filosofar livremente, mas, ao mesmo tempo, ser enredado pela retórica de Ahab, que consegue motivar a todos do navio, mesmo diante de um plano tão absurdo. Ele, Ishmael deveria aparecer como a voz da desconfiança, mas isso não acontece em momento algum do livro. Mesmo a razão parece ser dominada por essa vontade colossal. Talvez essa seja a verdadeira mensagem do livro algo sobre a capacidade da vontade humana de contrariar a tudo, a despeito de sua própria ruína. E se a razão, tão enaltecida por todos os pensadores da época, fosse apenas uma camada superficial, frágil, diante de um esqueleto poderoso e assustador, escondido, mas que dá a verdadeira sustentação a toda a existência? O que seria essa força, portanto? Esse poder básico e aterrador, grotesco e grandioso, como o esqueleto que ele deixa para descrever por último quando fala das baleias, seria uma força a qual Ahab estaria afinado e levaria toda a sua tripulação na mesma direção, exceto, mais uma vez Ishmael, que fica condenado a apenas relatar o que vê, sem poder de ação.
Melville está lidando, muito provavelmente, com a consciência da transcendência humana, ou seja, com o entendimento de que a vida humana vai além da vida material, mesmo quando o objetivo parece ser demasiadamente humano. E, como não há exatamente uma linguagem para descrever esse tipo de experiência sem cair em misticismo, sentimentalismo ou obscurantismo, o mito serve bem ao propósito de sua empreitada. Esse é o motivo pelo qual o livro se torna um enigma tão grande e tem tantas interpretações quanto leitores (modo de dizer). Agora, qual o sentido dessa experiência, além da própria experiência em si, isso fica para cada um descobrir. Não se pode esquecer que mesmo dentro do rigoroso pensamento de Levi-Strauss, Moby Dick, a baleia, poderia facilmente se configurar como um mito, porque corresponde a seu critério fundamental, o de que os mitos são verdadeiros trabalhos de bricolagem (inconscientemente ou involuntariamente).
No pensamento de Levi-Strauss, os mitos são compostos de pedaços de outros, de pensamentos e sobras de elementos históricos, enfim de uma somatória de elementos que se relacionam e compõem um todo, bastante dinâmico, no entanto, mas que tem uma lógica interna. É uma combinação com novos usos, com novas conexões e que terminam apresentando uma característica fundamental: de certa forma, todos os mitos se assemelham, afirmação que seu trabalho vai tentar comprovar ao longo de décadas, sendo impossível retomá-la aqui. Mas o que devemos reter é que mitos são uma combinação, mesmo em seu conteúdo, mas sobretudo na forma, de elementos díspares e dispersos.
E mesmo que Levi-Strauss tenda a não encontrar indícios de veracidade nos mitos, eles são formas que a humanidade encontrou para tentar explicar aquilo que fugia a seus recursos de entendimento, ou seja, a sua linguagem. Veja como isso é importante: o mito é uma maneira de insinuar alguma verdade incompreensível da existência humana para a qual não há meios de se falar com segurança. É por esse motivo — e nesse ponto discordo radicalmente de Levi-Strauss — que os mitos se parecem ou tem mecanismos semelhantes, porque a existência humana tem uma dimensão transcendente, para a qual não existe linguagem que dê conta, sendo necessário aludir de alguma maneira a ela, mesmo sem explicar. Quando acompanhamos essa história, mesmo já sabendo o fim, ela remete a uma verdade que não temos como explicar, mas que sentimos estar ali. Os mitos são uma combinação de elementos diversos porque mesmo tudo o que o homem foi capaz de produzir, não é capaz de dar conta dessa dimensão.
Ora, seria um mero acaso que o começo do livro consiga combinar, na mentalidade do homem do mar, tanto o paganismo de Queequeg e o sermão sobre o profeta Jonas? E não se pode deixar de notar que a descrição da personalidade, religião e costumes do selvagem são uma verdadeira aula de antropologia. Da mesma forma, o sermão sobre Jonas é absolutamente incrível, com ressonâncias por todo o livro. Mas também a união com a ciência náutica e o estudo das baleias, o modo como caçá-las e tudo isso reconfigurado, trabalhando ao lado da “obsessão de Ahab”.
E aqui a importância de dizer que Melville recorreu à criação de um mito, não apenas por usar uma criatura assustadora e poderosa demais, mas pelo mar, essa barreira ainda hoje misteriosa e que simbolicamente tem um significado vasto. E, claro, Ahab. Se tornou um lugar comum nos referirmos a ele como um obsessivo, intransigente e louco, que só enxerga sua vingança e mais nada. Talvez tudo isso esteja nublado pela necessidade de Melville de tentar traduzir a questão da transcendência da vida humana em termos os mais materiais possíveis. E se, apesar de sua personalidade histriônica, o que nos faz pensar em uma pessoa um pouco fora dos padrões, fosse mais do que uma vingança? É certo que as palavras trazem ruído, ou seja, que nossa comunicação não é cristalina e a incompreensão paira sobre tudo o que fazemos o tempo todo. Não tenho dúvida que Melville precisava de uma criatura completamente inabordável para mostrar que a amplitude de uma experiência de vida não pode ser resumida em simples palavras.
O que estou tentando dizer, através dessa lembrança de que Moby Dick é, afinal, um mito, não uma metáfora apenas, é que se não há linguagem possível para descrever a grandeza a que uma vida pode chegar, só resta fazer menção a algo que é essencialmente incompreensível e que serve aos homens das maneiras mais tolas possíveis, apesar das dificuldades de se chegar a ela. Pense bem: aventurar-se até diante de furacões para conseguir óleo para lamparinas... Ou qualquer outra utilidade prosaica que tivessem descoberto, não importa. Arriscar a vida por tão pouco. E toda a aventura , toda a dificuldade, todo o risco; francamente, não vale a pena. Apenas isso já indica que na verdade essa experiência tem um outro tipo de pagamento além do que recebem quando o navio retorna com porões cheios de óleo. É claro que Melville fala da plenitude da vida, de seus limites mais perigosos, onde a identidade se perde e não há mais temor algum de nada. O que se recebe em retorno a essa experiência, no entanto, acho que nem mesmo ele puderia dizer, não ao menos de modo compreensível. Creio ser esse o motivo pelo qual o livro se tornou um alicerce de nossa cultura, um clássico absoluto. Ele trata dos limites da vida humana, de uma experiência tão extrema (que não significa o risco da caça às baleias, mas da transcendência da vida) que simplesmente não há linguagem apropriada possível e capaz de dar conta do que Melville pressentiu. Daí a utilização de um mito, que ele foi buscar um pouco no história de Jonas, um pouco no paganismo, um pouco na realidade e nas histórias de pescadores, etc. “Moby Dick” é isso, portanto, um enorme caleidoscópio que combina elementos para dizer o indizível, o inabordável.
Por isso, não é um livro de aventuras, embora possa ser lido dessa maneira. Mas deixa a sensação de que participamos de algo terrível demais para ser apenas uma aventura, mesmo uma tragédia. E a verbalização do que acabamos de ler é sempre travada por alguma coisa que não se consegue dizer. O que faz de “Moby Dick” um livro tão grandioso? Certamente não é a descrição - bastante tímida a meu ver – de Ahab. Esse é só mais um elemento para se colocar no caleidoscópio. Mitos são profundamente ligados à cultura de que fazem parte. E creio que uma pista para a compreensão do livro é o século em que foi escrito. Por exemplo, Darwin lançaria seu livro fundamental para toda a ciência posterior a ele, ainda nessa década. Havia uma explosão de pensadores, como Marx e Engels, o socialismo pulsante na Europa, enfim, a humanidade estava enveredando claramente para explicações estritamente materialistas da vida e dos fenômenos, sejam eles sociais ou naturais. A antropologia nascia enquanto ciência, também e Melville, embora aparente desconhecer qualquer formação nessa área, consegue fazer etnologia no começo de seu livro. Apenas essa ciência, que abordava comparativamente os homens e suas culturas, religiões, sociedades — e desprezando qualquer explicação religiosa sobre as diferenças — já seria capaz de modificar os rumos do entendimento da humanidade sobre si. Creio que Melville pressentiu essa guinada e deu uma resposta enigmática para toda essa nova visão sobre o ser humano.
“Parece-me que, olhando para as coisas espirituais, somos como ostras observando o sol através da água e achando que a água espessa é o ar mais sutil.” (p. 63)
Essa frase, ainda do começo do livro, mas que ecoa a célebre frase de Shakespeare, indica que o autor não pensa em respostas, mas em dúvidas, pois são elas que fazem a humanidade lutar e progredir. Num século em que a ciência parecia encontrar tantas respostas sobre o homem, aparece um livro meio esquisito falando de coisas que não se limitam à vida concreta, mas que a direcionam e a recolhem, resignificando toda a existência e levando a uma busca perigosa e sem promessa alguma de sucesso, mas que não se pode deixar de lado. Ahab só é um maníaco se estivermos fechados a essa dimensão, se tratarmos as coisas do espírito como questões psicológicas, encaixadas em explicações perfeitas e que não deixam espaço para nada fora delas. Mas o fenômeno humano é muito mais complexo e maior do que essas explicações.
Valeria a pena comentar sobre o sermão a respeito do profeta Jonas, que aparece no começo do livro, mas isso seria longo e além de minhas capacidades. A despeito disso, deixo aqui uma citação retirada dele, onde o pastor diz que Jonas procurava fugir de Deus pelo mundo e isso jamais poderia terminar bem.