R...... 17/09/2020
Edição Nova Cultural (2002)
Transcende uma mera aventura tornando-se um dos mais importantes romance histórico do século 19, sobre a exploração baleeira que, naquele contexto, era impactante ao desenvolvimento da sociedade pulsante na necessidade de óleo.
O livro é volumoso e é interessante que o protagonismo de Moby Dick, numa interação em tempo real com as personagens, se dá apenas no final, quando a história já avançou em mais de 90% do texto. Antes disso a lendária baleia é mencionada em poucos relatos, sendo a maior parte dedicada a múltiplos detalhes sobre a exploração baleeira, o que reforça a percepção de romance histórico.
O contexto é bastante realista e não poderia ser diferente, pois o autor fez minuciosa pesquisa e também valeu-se de experiência como tripulante em um navio baleeiro, testemunhando de perto muita coisa que o livro conta.
Melville fez menção às baleias englobando diferentes épocas e obras da literatura mundial; trouxe relatos históricos (como os desdobramentos com o navio Essex, uma das inspirações para o livro); descreveu a biologia de época sobre os cetáceos (e do passado pré-histórico também); mitos correlacionados (como a definição da baleia como o leviatã); a religiosidade despertada no contexto; os navios baleeiros e seus tripulantes em vários detalhes; e perigos enfrentados no cenário natural e sobretudo na caça, onde o leitor tem revelações até então pouco abordadas, como se fora uma experiência 'in situ' diante dessa realidade.
Para mim três coisas se destacam na valorização desse recorte temporal referente à exploração das baleias.
- A primeira é que a caça em si tem similaridade à uma CORRIDA PELO OURO. Vemos o desprendimento acirrado dos homens nessa busca, que levava à empreitadas de afastamento a lugares ermos por dois ou três anos, onde haviam incertezas diante do desconhecido e perigos, mas também esperança de jornada com bons retornos. O óleo era valioso, a busca difícil, mas a recompensa poderia ser satisfatória, de certa forma como na corrida pelas riquezas.
- O leitor percebe que o livro tem várias referências a nomes ou passagens bíblicas (por exemplo, Ismael é o nome do narrador e o 'lamento de Raquel pelo destino dos filhos' é referenciado na busca do navio que não por acaso tinha o nome de Raquel e lamento do capitão por conta do filho desaparecido). A religiosidade é também notória em arpoeiros não cristãos, como em Quiqueg, nativo da Oceania. Esse é o segundo aspecto notório na obra, A RELIGIOSIDADE, impulsionada pela necessidade de segurança e esperança, algo comum em situações de interação bruta com a natureza, diante de apreensões. Quanto mais visceralidade nessa interação, maior a predisposição para a fé. Não é regra, mas acontece com frequência. É uma fé movida pelo medo... Pudéssemos ter fé como de Habacuque, não apegada às circunstâncias, como se relata em Habacuque 3:17-19.
- A terceira é a MITOLOGIA no contexto, na equiparação da baleia ao Leviatã, monstro mítico descrito na Bíblia. Creio que essa particularidade se dá como um enobrecimento à jornada dos baleeiros, ressaltando enfrentamento a perigos inimagináveis. Uma exaltação de atribuição heróica a eles...
Dessa forma, na junção dos três aspectos, temos uma valiosa busca de riqueza, que denotava fé e era cheia de históricas míticas.
Registrando algumas curiosidades, Ismael embarcou em busca de aventuras e tinha apego pela adrenalina a ponto de ser descrito como brigão provocador antes da fatídica viagem; na pesquisa minuciosa Melville cometeu um erro na questão bíblica, ao referenciar Gabriel como arcanjo (A Bíblia relata apenas o nome de um arcanjo e este é Miguel, talvez o único arcanjo que exista, outros nomes são de origem apócrifa); ainda na questão bíblica foi curiosa a abordagem do padre Maplle sobre a história de Jonas (equiparando-o a um contrabando no navio em que fugia, similar a algo ilegal); e foi também interessante a descrição do povo de Quiqueg diante da morte (para eles não havia entrega fácil a circunstâncias trágicas, com resolução de luta a que muitos na prática não se dispõem, como se não devessem sucumbir antes de cumprir um papel a que se sentem responsabilizados).
Apenas anotações, curiosas pelo menos para mim...
Sobre pontos negativos, vou falar apenas de algo que me incomodou como leitor, referente à edição que li (porque da história, em seus acertos e erros gostei muito). Trata-se do capítulo 32, de nome "Cetologia". É uma descrição biológica sobre as baleias conforme o pensamento do século 19. Meu descontentamento é na ausência de notas editoriais decentes, que situem o leitor sobre as descrições que Melville fez. Vergonhoso a edição trazer nota que diz que não tem conhecimento na atualidade em certos aspectos citados pelo autor. Oras, que coisa desleixada e insatisfatória, de pouca valorização à obra...
Finalizando, no ápice do livro, sobre os desdobramentos finais, tão esperados por Acab, o leitor tem impacto de tudo o que o livro vinha expressando e duvido que não tenha sua criticidade despertada! Afinal, em paralelo às percepções que havia registrado, aquela caça a Moby Dick não é 'corrida pelo ouro', muito menos evoca algo religioso sobre conquista, nem tão pouco, por mais que a baleia seja magnificamente poderosa e perigosa, esta não é um Leviatã., em verdade, quem é o monstro? Há inversão de papeis e vemos o homem no papel de irracional, com motivações torpes e disposições egoístas... Certamente não era a adrenalina que Ismael buscava, nem missão almejada por Quiqueg, e todos não deviam estar ali, tal qual Jonas no barco em que fugia.
Chega de spoiler... como se todos não soubessem como é mais ou menos essa história...
Foi a segunda vez que li a obra em texto integral, consumiu bastante meu tempo, concentrei a leitura quase só nela durante alguns dias, mas novamente foi uma experiência muito boa.
Li nos idos da pandemia em Macapá...