Luísa Coquemala 03/02/2017
A ESCOLHA SHAKESPEARIANA
Shakespeare é um dos meus autores favoritos. Quando eu tinha por volta de treze anos, li Romeu e Julieta pela primeira vez e foi uma leitura memorável. Sempre acabo visitando novas obras de Shakespeare ou revisitando as que já conheço – constantemente aprendendo algo novo e notando algo que tinha passado despercebido, como é justo que aconteça na leitura de um autor tão bom.
Contudo, não sei exatamente o porquê, mas nunca tinha lido Macbeth. O livro sempre ficava ali, na prateleira, sorrindo para mim. Eu sabia algumas coisas do enredo e da presença das bruxas na história (o que me atraia particularmente), mas, como uma daquelas coisas das quais a gente não sabe bem a resposta, eu adiei a leitura da obra até esses dias.
Acrescento ao início do meu relato o fato de ter lido o texto de Auerbach, O príncipe cansado – texto sobre Shakespeare presente no grande clássico Mímesis. Enquanto lia Macbeth, o texto do teórico vinha sempre à mente. Mas nós vamos chegar lá. Antes, entendamos um pouquinho melhor a trama da história.
Macbeth é um fiel guerreiro e serve a Duncan, rei da Escócia. Após uma luta férrea contra tropas rebeldes irlandesas e norueguesas, Duncan decide, após receber notícias, agraciar o nobre Macbeth com o título que fora do Thane de Cawdor, agora derrotado na batalha. Macbeth ainda não se encontra ciente de tais detalhes.
Enquanto voltam para suas casas, em meio à floresta, Macbeth e Banquo, seu amigo, cruzam com três bruxas – as quais trazem as seguintes mensagens: a primeira é que Macbeth será rei e a segunda e que Banquo será pai de reis (ou seja, por mais que Macbeth seja rei, não é a sua dinastia, mas a do amigo, que vai prosperar).
É importante ressaltar aqui que as bruxas, apesar das predições, não dizem em nenhum momento como os acontecimentos se desenrolariam (ou seja, pulam os meios e predizem logo os fins). Assim que fica sabendo de notícia (também manifestada pelas bruxas) de que Thane de Cawdor está morto e o título seria seu, Macbeth passa a dar mais credibilidade ao que fora dito pelas bruxas e, então, atenta-se para o fato de como, se as bruxas de fato estão certas, se tornará rei. Não demora muito e vemos que o fiel Macbeth logo começa a pensar em um assassinato como meio de chegar ao reinado:
“Se boa, por que cedo à sugestão
Cuja horrível imagem me arrepia?
E bate o coração contra as costelas,
Negando a natureza? Estes meus medos
São menos que o terror que eu imagino;
Meu pensamento, cujo assassinato
Inda é fantástico, tal modo abala
A minha própria condição de homem,
Que razão se sufoca em fantasia,
E nada existe, exceto o inexistente.” *
Tomado por sua ambição (e também incitado por sua ambiciosa esposa, Lady Macbeth), Macbeth acaba seguindo seus planos e mata Duncan. Não demora muito e toda a rede de mentiras criadas, para se manter, precisa de mais mortes por parte de Macbeth – já não tão entusiasmado assim, mesmo sendo rei.
Basicamente, eis o enredo da peça de Shakespeare. O restante, eu deixo a quem interessar possa. Contudo, apenas com esse breve resumo já é possível chegar ao grande questionamento da peça: estaria Macbeth predestinado a se tornar o rei, e as bruxas seria apenas as anunciadoras do fato? Será que ele poderia se tornar rei por outros meios e se precipitou cometendo o assassinato? Ou, então, será que Macbeth se tornaria rei de qualquer maneira?
É então que me lembro do texto de Auerbach e todas as consequências que sua interpretação acarreta.
Resumidamente, Auerbach acreditava no fato de que o mundo para Shakespeare era diferente, por exemplo, do mundo de Sófocles, grande dramaturgo da Antiguidade clássica. Consequentemente, a maneira como se representa os destinas das personagens nas peças de teatro também se tornam diferentes: se no teatro grego clássico nós nos confrontamos com a definição de tragédia, uma situação negativa e inescapável, em Shakespeare, as personagens passam a ser responsáveis por seus atos – que são escolhas de conduta exclusivamente suas. Dessa maneira, nas tragédias antigas nós percebemos a interferência divina na vida das personagens trágicas, enquanto que, em Shakespeare, o fim das personagens é resultado direto de suas ações, e não de uma vontade divina pela qual são guiadas.
Pensemos, por exemplo, em Édipo Rei. Na famosa peça de Sófocles, Laio, pai de Édipo, recebe o vaticínio de que um dia há de ser morto pelo próprio filho. Partindo disso, Laio pede para que matem seu filho jogando-o de um penhasco e o assunto fica por aí. Contudo, anos depois, Laio, em meio a uma viagem, é atacado e morto por seu próprio filho (que fora, na verdade, salvo). Édipo, então, se torna rei de Tebas e se casa com a viúva de Laio, Jocasta (sim, Édipo se casa com sua própria mãe, mesmo não estando consciente disso). Contudo, quando Tebas se vê em meio a uma peste, cabe a Édipo, para se livrar dela, descobrir quem matou o antigo rei – e é então que Édipo precisa de confrontar com a dura verdade de seus atos e com seu funesto destino.
A questão a ser ressaltada aqui é que esse desfecho é uma espécie de destino inescapável do próprio Édipo. Os passos são guiados por deuses e eles já traçaram o destino de Édipo e de sua família, não importa o que façam ou quanto tentem fugir disso. Cabe a Édipo, naquele momento, aceitar seu próprio fado.
Se em Sófocles temos um vaticínio feito por um vidente, em Shakespeare temos as bruxas. Assim, por mais que se anuncie um hipotético reinado de Macbeth, as maneiras pelas quais Macbeth chegará ao poder dizem respeito ao próprio Macbeth – é ele quem quer o atalho, é ele quem pensa no assassinato e o executa. Já não temos, aqui, a ideia de tragédia como algo inevitável e designado pelos deuses. Macbeth comete todos os atos de maneira voluntária, calculada de acordo com seus próprios interesses – enquanto Édipo mata o próprio pai e casa com a mãe sem nem desconfiar da gravidade do que está fazendo.
Inclusive, depois de refletir sobre seus atos, Macbeth sinaliza a falta de verdade em tudo o que as bruxas dizem. É preciso desconfiar:
“Maldita a língua que me conta isso,
Pois me acuou e me fez menos homem.
Não creia mais ninguém em falsas bruxas,
Que nos enganam com sentidos duplos.
Cada palavra é dada ao nosso ouvido,
Mas traída se agimos com esperança:
Não combato contigo.”
Shakespeare se utiliza de um artifício da tragédia grega (o vaticínio) justamente para contestar sua validade em um mundo já não mais governado por deuses – e mostra, assim, seu novo significado em um mundo onde nossas ações dizem respeito a nós mesmos. Ou seja, temos um artifício semelhante, mas voltado para um significado completamente diferente. Dessa maneira, Shakespeare, com toda sua maestria, nos ajuda a vislumbrar um pouco mais da complexidade humana, da dificuldade em assumir os próprios erros e lidar com a ambição.
A maneira pela qual Shakespeare conduziu suas tragédias, onde as personagens executam suas ações governados pela vontade e consciência, fala muito mais ao mundo atual. Hoje, já não levantamos nossas mãos aos céus, culpando os deuses, mas preferimos olhar para a frente, procurando explicações plausíveis para os acontecimentos (o que não faz de nós melhores, mas isso é outro assunto).
Assim, se Macbeth assume o reinado através de meios ilegítimos, é assim que vai precisar mantê-lo: escondendo verdades, enganando e subornando. O poder ilegítimo por si só já traz problemas e está envolto em mentiras. E é claro que existia poder corrupto antes de Shakespeare. Mas agora é preciso encarar a própria corrupção de frente, como uma escolha de conduta própria, e vislumbrar a ganância que leva à conquista de um poder corrupto. Surge, logicamente, a dificuldade de mantê-lo. (E pra perceber isso a gente não precisa ir muito longe).
O mundo de Shakespeare segue essa linha. Diante do que os homens podem fazer, agindo por vontade própria, é inevitável o reconhecimento de que, como escrito em Macbeth, vivemos em um mundo onde “agir mal às vezes é louvável, mas o bem é tido qual loucura perigosa.”
*A tradução utilizada é a de Bárbara Heliodora
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