spoiler visualizarbrunatschaffon 19/06/2020
Para corrigir alguns equívocos que li em resenhas anteriores
Resenha postada originalmente no meu instagram, decidi postar aqui e desenvolver mais alguns pontos porque vi algumas resenhas que parecem ter equivocadamente entendido este livro como se Dostoiévski concordasse com seu personagem Ivan. Vamos à análise.
Aliocha Karamázov é genuinamente um dos personagens mais cativantes da Literatura. Assim como em “Crime e Castigo”, Dostoiévski usa um crime como plano de fundo para discussões existenciais, religiosas, filosóficas e sociais, todas interligadas com sua notória maestria e manifestadas por meio de personagens que saltam das páginas, por demasiado reais.
Novamente, assim como em “Crime e Castigo” (e em tom que é recorrente em sua produção literária), o autor deixa nítida a falha fundamental do que viria a ser o relativismo niilista de Nietzsche: se todos os valores humanos são construídos e ao homem superior (ubermensch) “tudo é permitido”, inclusive criar seu próprio código de conduta, temos um nada paradoxalmente feito absoluto e homens livres até mesmo para matar, mas traídos pela culpa de suas consciências, que evidenciam que a teoria niilista não consegue ser posta em prática nos moldes propostos. Nesse sentido, Ivan Karamázov representa a personificação da teoria filosófica aceita a princípio acriticamente, enquanto Smiérdakov (e Raskolnikov, em Crime e Castigo) são evidências de sua falha estrutural na própria premissa. Como diz Smiérdakov para Ivan (pg. 816): “tudo é permitido. Isso o senhor me ensinou de verdade, porque naquela época o senhor me disse coisas como essa”. Em muitas resenhas, vejo que as pessoas dizem que Smiérdakov seria uma deturpação do pensamento de Ivan; mas o que Dostoiévski constantemente mostra em suas obras é que tal deturpação é uma forçosa consequência do relativismo em seu grau absoluto: não é uma coincidência que tanto Ivan, quanto Smiérdakov e Raskolnikov, os niilistas de Dostoievski, terminem todos por enlouquecer ou se matar. Crime e Castigo é uma resposta antecipada a toda a teoria do superhomem que Nietzsche desenvolveu.
Nitezsche teria dito, como admirador: "Dostoiévski é o único psicólogo com que tenho algo a aprender". Creio que intuitivamente ele sabia que o romancista havia encontrado a pedra angular rejeitada pelo filósofo. O que Dostoiévski faz ao explorar a falha intrínseca do niilismo é uma constante em Irmãos Karamázov e em Crime e Castigo: se tudo é permitido e os valores são construções, se o homem superior pode criar seu próprio código moral, o que impede que tal homem entenda justificado o assassinato? (E veja que podemos pensar em alternativas ainda piores). E se tais superhomens são totalmente livres para assim fazê-lo, por não estarem mais escravizados por valores impostos pela sociedade, a culpa que os personagens niilistas sentem nos romances de Dostoievski mostram a crença do próprio autor de que nem tudo é relativo e de que o próprio coração humano naturalmente indica o paradoxo intrínseco ao relativismo absoluto.
Ademais, se todos os valores são impostos pela sociedade e são relativos, o que faz com que a máxima moral de Nietzsche não seja também em si mesma relativa? Nietzsche parece considerar toda construção moral relativa, exceto sua própria premissa construída de que toda a moralidade é relativa. A ironia é fascinante.
Além desse dilema do niilismo, Dostoiévski, (convém por sinal lembrar que ele era cristão ortodoxo), coloca Ivan em contraposição com Aliocha, o irmão que por toda a obra pratica a virtude e o amor ativo, apesar de todos os conflitos ao seu redor. Nele, vemos o Evangelho de Cristo em ação, vivo, palpável, sempre disposto a amar em vez de condenar num legalismo frio e cruel.
O irmão mais velho, Dimitri, acusado de matar o pai, é por vezes ofuscado por Ivan e Aliocha, confesso, mas simboliza a entrega à sensualidade e à paixão, numa vertente autodestrutiva.
“Os irmãos Karamázov”, mais do que um romance, é um livro sobre a humanidade.