spoiler visualizarElayne Pontual 11/01/2012
O romance clássico escrito no século XIX pelo autor russo Fiódor Dostoiévski narra a história de três irmãos: Ivan, Alieksiei e Dimitri Karamázov. É composto por quatro partes, epílogo e dividido em duas narrativas. Ao abrirmos o livro, antes de iniciar a primeira parte, encontramos um prefácio onde Dostoiévski expõe seus conceitos sobre Alieksiéi Fiódorovitch, um dos irmãos Karamázov considerado pelo autor o herói do romance. Para Dostoiévski, Alieksiéi mesmo sendo um herói modesto e vago ainda assim é notável: "A meus olhos, é ele notável, mas duvido muito que consiga convencer o leitor. O fato é que ele age seguramente, mas de uma maneira vaga e obscura" (Fiódor Dostoiévski, S/D, p.09). O autor, despretensioso, transpõe insegurança com relação ao romance, mas atinge a curiosidade do leitor e em momento algum, no decorrer da narrativa, decepciona.
Dostoiévski inicia a obra relatando a história de Fiódor Pávlovitch Karamázov, homem rico, proprietário de terras, sem pudores e que vive para gastar seu dinheiro com prostitutas e bebidas. Casado três vezes, tem seu primeiro filho, Dimitri, com Adelaide Miúsova, moça bonita, espirituosa e de família nobre. Adelaide foge com um seminarista, deixando Dimitri (Mítia) sob custódia do pai irresponsável. Como já era de se esperar, Pávlovitch desinteressasse totalmente pelo filho e deixa-o sob os cuidados do criado Gregório. Mais tarde um primo de Adelaide, Piotr Alieksándrovitch, sabendo da desgraça da prima e da existência de Dimitri, luta pela guarda do menino conseguindo ser seu tutor, mas no fim das contas confia Dimitri a uma tia que morre deixando Mítica com uma filha casada. Fiódor Pávlovitch, ao livrar-se do primeiro filho realiza outro casamento, desta vez com Sofia Ivânovna, uma mulher bastante jovem que foi educada e maltratada por sua benfeitora e que mais tarde, tomada por uma febre nervosa, morreria deixando dois filhos para Pávlovitch: Ivan e Alieksiéi.
Enquanto discorre sobre o pai dos Karamázov, Dostoiévski deixa escapar uma consideração particular a respeito de indivíduos como Fiódor Pávlovitch: "Muitas vezes, as pessoas, mesmo más, são mais ingênuas, mais simples do que pensamos. Nós também, aliás." (IBID, p. 15). Percebem-se então, no decorrer da narrativa, pensamentos semelhantes que abordam assuntos de natureza humana, como o amor, a esperança, o ódio e a crueldade, através de personagens tão humanos quanto nós.
O primogênito de Fiódor Pávlovitch, Dimitri Karamázov, cresceu acreditando que tinha alguma fortuna e foi em busca dessa suposta "riqueza" que estaria com seu pai. Pávlovitch sabendo da ideia errada que o filho fazia da herança deixada pela mãe, liberou aos poucos pequenas somas, onde no fim resultou no valor total dos bens pertencentes à Dimitri. Quando este foi em busca de uma regularização de contas definitiva, percebeu que não tinha direito a mais nada. Ficou revoltado e a partir de então, tornou-se o maior inimigo de seu pai. Vivendo de excessos, Dimitri acaba se apaixonando por Agrafiena Ivánovna Svietlova, a tão disputada Gruchenka. Além da rixa por questões de dinheiro, Mídia tem de concorrer com o seu pai o amor de Gruchenka, e por esse motivo acaba sendo acusado de parricídio. Porém, existe um segundo suspeito, Smierdiákov, um suposto filho de Pávlovitch com uma louca, que se torna cozinheiro daquele que poderia ser o seu pai. No fim, Smierdiákov adoece e confessa a Ivan, o segundo filho da vítima, como matara Pávlovitch, entregando-lhe os três mil rublos que havia desfalcado. No entanto, o modo que Mítia levava a vida, desregradamente, vivendo suas emoções de maneira intensa, foi decisivo para sua condenação.
Ivan Karamázov, o irmão do meio, é a personagem que, visivelmente, Dostoiévski usou para expor questões como a existência ou não de Deus. Através de Ivan, o autor nos faz refletir sobre uma possível ampliação do cruel e subtração da moral e ética na ausência de uma Divindade. "Tudo é permitido, já que Deus não existe", é um pensamento que marca a personalidade do irmão de Aliócha e Dimitri, levando à reflexão de um mundo ateu, de uma sociedade relativista e individualista, onde não há espaço para leis divinas influenciadoras das leis do homem. Percebe-se claramente na personagem alusões ao niilismo, já que na época o ateísmo estava ganhando forma. Dostoiévski mostra os dois lados da moeda: Ivan e Aliócha, o niilista e o cristão. No decorrer da narrativa, Ivan expõe seus pensamentos e termina por exercer forte influência sobre Smierdiákov, e, ao ouvir do criado que este matou Pávlovitch, entende que o fato se deu por causa da sua interferência sobre os pensamentos do criado. Numa crise de febre nervosa, Ivan se depara com a prática da própria teoria. Smierdiákov morre, sem deixar nenhuma carta havendo qualquer indicação de que foi ele o assassino de Pávlovitch. Arrependido, Ivan decide ir ao julgamento de Dimitri com os 3000 rublos como prova da inocência do irmão, mas seu testemunho não é considerado devido à sua doença. O caso de Ivan Karamázov pode ser comparado ao do professor Rupert, do filme Festim Diabólico, onde os conceitos de Rupert influenciam dois de seus alunos e estes matam um colega de classe. O professor também acaba se deparando com a prática da teoria niilista seguida por ele e, no fim, se arrepende.
O terceiro filho, Alieksiei ou, como é conhecido, Aliócha, o herói de Dostoiévski em Os Irmãos Karamázov, é, dos três, o irmão mais pacífico, que decide de acordo com o conselho do stártsi Zósima abandonar o mosteiro e trilhar seu caminho. Aliócha é cordial, pacato, amigo e apóia-se em sua crença em Deus para decidir o que é certo e o que é errado. É através dessa personagem que Dostoiévski mostra o outro lado da moeda: o cristão. Sendo cristão, o autor usou Aliócha para apontar virtudes como a humildade, a honra e o respeito motivados pela fé em Deus. Mesmo assim, Dostoiévski não deixou de criticar o comportamento hipócrita de alguns líderes religiosos.
Ocorre um fato, também importante na história de Aliócha: Mítia humilhou o pai de um garoto, Iliúcha, diante de "todos" da cidade. O menino entrou em depressão e ficou muito fraco. Aliócha queria se desculpar por seu irmão e terminou fazendo amizade com Iliúcha, sua família e seus amigos. Nas últimas páginas do livro, Aliócha, reunido com os amigos de Iliúcha, logo após o enterro deste, alerta a todos sobre o valor da amizade, o futuro e a esperança.
Dostoiévski narrou através de personagens fictícias a história de pessoas comuns, percorrendo as vias dos sentimentos compartilhados por toda humanidade. Ao ler Os Irmãos Karamázov percebemos um mundo que sempre esteve à nossa volta, mas que nós costumamos não enxergar. É através das várias personagens do romance que Dostoiévski revela seus conceitos sobre a vida, o mundo, a sociedade, a fé e a ausência dela. Encontramos no livro inúmeras discussões filosóficas e teológicas, questões como a moral, a ética, o individualismo e a fraternidade. Há uma parte do romance, na biografia que Aliócha fez para o "Stáriets" Zósima, "redigida segundo as palavras do próprio Stáriets", onde Zósima conta a história de um misterioso viajante. Um trecho bem interessante dessa passagem do livro é quando o viajante toca em um assunto bastante atual:
(...) no presente cada qual aspira a separar sua personalidade dos outros, quer gozar ele próprio a plenitude da vida; entretanto, todos esses esforços, longe de atingir o alvo, só resultam num suicídio total, porque, em lugar de afirmar plenamente a sua personalidade, caem numa solidão completa. (IBID, p. 222)
Trechos como esse nos fazem refletir sobre o mundo em que vivemos, sobre a vida que levamos e como estamos nos relacionando com o próximo. Percebemos claramente a atualidade do romance, pois estamos cada vez mais individualistas e nos preocupamos constantemente em construir nossa identidade através de bens materiais: "Na solidão, preocupa-se muito pouco com a coletividade. Afinal de contas, os bens materiais aumentaram e a alegria diminuiu." (IBID, p. 230).