Alissia0 18/10/2024
Ainda bem que o rascunho desse livro não ficou no lixo
Para sua época, Carrie é um livro muito ousado (e brilhante!). Embora tenha sido publicado na década de 1970, ele me fez refletir, no decorrer da leitura, o quanto sua narrativa ainda por ser facilmente discutida hoje em dia. O que verdadeiramente me horrorizou não foi o elemento sobrenatural, como em outros livros do King que eu já tive o privilégio de ler; foi a própria crueldade e hipocrisia do ser humano. Carrie é apenas uma garota que, apesar de sua peculiaridade - os poderes telecinéticos -, merecia receber amor, empatia e gentileza como qualquer outra pessoa. Ela só desejava ser mais uma adolescente comum, apaixonada e despreocupada, como vemos na cena do baile antes da tragédia. Mas, no lugar da caridade e amor, Carrie enfrenta o fanatismo religioso da mãe que, curiosamente, encarna tudo menos afeição e carinho. As garotas e garotos da escola - ou da cidade, como o Billy - também desempenham papéis fundamentais nessa história, sendo responsáveis pelos inúmeros atos de bullying que a Carrie suportou ao longo dos anos.
A cena do baile deixa claro que a Carrie só queria se divertir como uma garota de 16 anos normal, mas a maldade das pessoas a empurrou ao limite, transformando sua raiva e sede por vingança nas atrocidades que devastaram Chamberlain. Foi muito chocante acompanhar os abusos que a personagem sofreu da própria mãe (como as tentativas de assassinatos) e os atos de penitência (ou melhor, de castigo), que revelam uma mulher desequilibrada e extremamente fundamentalista, cuja obsessão religiosa nos faz questionar a tênue linha entre devoção e alienação, levando-a à beira da ignorância, violência e total descontrole emocional, sobretudo em relação à própria filha.
Além disso, os colegas de escola, agindo como um bando de imbecis como somente adolescentes podem ser, a maltrataram tanto psicologicamente quanto fisicamente, ou simplesmente optaram por negligenciar os próprios atos de crueldade contra a garota ("fizeram vista à grossa", como dizemos), pois ela é só mais um "quadro branco" usado para projetarem todo ódio e frustração que eles sentem sobre si mesmos (e não é isso que o bullying é, em seu núcleo? Uma manifestação da sua própria insegurança sobre o outro?). Mas o mais perturbador para mim é que a mesma cidade que contribuiu para transformar Carrie em um ?monstro? decidiram pela conclusão da Carrie ser a própria origem do mal no final ("Carrie White está queimando por seus pecados/Jesus não falha nunca"), seguindo a vida sem refletir sobre suas próprias ações e prontos para continuar cultivando comportamentos hostis e violentos. Isso se torna ainda mais inquietante nos dias atuais, com o bullying elevando-se à esfera digital, tornando-se mais letal e irrefreável.
No geral, é muito interessante como o King relacionou a manifestação latente dos poderes da Carrie com a puberdade feminina, uma fase repleta de emoções não compreendidas e que pode ser traumatizante para muitas mulheres. O livro começa justamente com o episódio da primeira menstruação de Carrie, um evento que ocorre em um ambiente onde ela já se sente inferior e pressionada ? e pode ter sido, justamente, foi a razão que causou o sangramento. Pela forma como ela processou tal momento, também é possível perceber o quanto ela é deliberadamente negligenciada pela sua mãe em termos emocionais, psicológicos e físicos, na mesma medida que é possível notar a desumanização que ela sofre pelas colegas da escola. O fato de algo tão biologicamente natural ter sido usado como arma de humilhação revela o potencial humano para o egoísmo, insensibilidade e intolerância.
No livro, é possível traçar um paralelo entre o fanatismo religioso da mãe da personagem e a perversão que esse extremismo pode gerar. A mãe de Carrie, que se coloca em uma posição de superioridade moral devido à sua restrita condição para pureza, acredita que somente o sangue pode expiar os pecados, uma visão que ela impõe obsessivamente em alguns momentos do livro. No entanto, o destino de Carrie, curiosamente, contradiz essa ideia: no final, ela é literalmente banhada em sangue, mas em um contexto de extrema crueldade e com propósitos muito depravados, muito longe de causar qualquer redenção. Ao invés de purificá-la, esse ato desperta uma fúria incontrolável na personagem. A moral por trás disso é que, às vezes, a perversidade humana pode ser tão profunda ao ponto de criar uma espécie de círculo vicioso de maldade, que, por si só engloba todo o horror visceral que eu precisava nesse livro.
"Sangue de porca para uma porca"