Toni 16/03/2023
(re)Leituras de 2022
Macunaíma [1928]
Mário de Andrade (SP, 1893-194)
Antofágica, 2021, 352 pág.
Eu que já torci o nariz tantas vezes para a Antofágica, faço questão de começar dando o braço a torcer: esta edição não é apenas, creio, o trabalho mais bonito da editora, é também um dos livros mais graciosos que hoje guardo na estante, graça alcançada–tenho certeza–pela irrepreensível simbiose entre o texto e as ilustrações de Camile Sproesser. Nelas, toda a estranheza intencional e polifolclórica da narrativa de Mário de Andrade se materializa em uma explosão de cores e imagens que são puro-suco modernista: promessa, sátira, exagero, irreverência, crítica, brasilidade…
Apesar de este ter sido meu 3º encontro com o famigerado herói (após o ensino médio e a faculdade de Letras), foi a 1ª vez que consegui terminá-lo um pouco mais simpático ao conjunto da obra. Macunaíma não é leitura de fácil fruição, muito talvez porque não seja “só” literatura, mas um livro-manifesto que, apesar de escrito em um “transe criativo” (segundo seu criador), foi gestado ao longo de muitos anos de pesquisa. Se lido, quem sabe, enquanto proposta aglutinadora de lendas indígenas organizadas por um espírito satírico, enquanto projeto democratizante dos falares do Brasil, enquanto tentativa de borrar os limites dos biomas nacionais e apresentar fauna e flora geograficamente misturadas, se lido, enfim, como alegoria do fracasso de um Brasil em busca de sua própria identidade (não mutilada pela máquina do progresso, não um simulacro do norte global), talvez, então, Macunaíma possa arrancar risos e até mesmo alguma lágrima.
A história—rapsódia contada por um papagaio ao narrador—tem um risco narrativo muito claro: a busca de Macunaíma, filho do medo da noite, Imperador do Mato Virgem, pela muiraquitã, amuleto que sua amada Ci lhe dera de presente. Essa jornada leva o herói a São Paulo e de volta outra vez, fazendo-o entrar em contato com diferentes faces da cultura e da religiosidade brasileiras, bem como problemas estruturais da nação. (O cap. que parodia a linguagem verborrágica dos intelectuais de fachada é um dos pontos altos da obra).
Mas o principal traço a ser observado no romance de Mário de Andrade é a tal “ausência de caráter” do protagonista. Caráter, neste caso, não deve ser confundido com probidade ou brio (ainda que seja uma leitura possível tendo em vista os momentos de desonestidade e esperteza de Macunaíma), mas no sentido mesmo de identidade, índole, natureza. Basta repararmos como o herói muda de forma e dificilmente permanece o mesmo por três capítulos seguidos. E até seu comportamento é incerto, movente: ora medroso, ora valente; generoso e bárbaro; preguiçoso mas envolvido em uma aventura atrás da outra–incapaz de ser reduzido a uma síntese.
Além disso, não é possível esquecer que Macunaíma mata a própria mãe por engano, e por uma série de outros enganos está sempre um passo atrás de recuperar a muiraquitã que poderia lhe trazer alguma paz de espírito ou a possibilidade de fincar raízes. Esse é apenas mais um aspecto que comprova a sagacidade criativa de Mário de Andrade. O herói da nossa gente representa esta gente nossa sem nenhum caráter (aqui sim, em todos os sentidos possíveis, incluindo a torpeza daqueles que votam pelo preconceito, pela morte, pela destruição, pela violência, pelo pensamento único, pela moral imoral...). Já achei por muito tempo Macunaíma um livro esquecível (muito por conta, reconheço, de meu ranço com a importância que as histórias literárias atribuem ao movimento modernista – eminentemente paulista, mas dito brasileiro –, ofuscando a produção nordestina e retirando o “romance de 1930” de seu lugar de direito como definidor dos caminhos tomados pela literatura brasileira no século XX). Hoje, insuflado pela melancolia de seu último capítulo, me sinto finalmente próximo deste herói da nossa gente, feito de tantos remendos (culturais, históricos) e violências (físicas, simbólicas) quanto a matéria que forma cada um de nós.