spoiler visualizarIsa Beneti 22/09/2020
Uma repetição de ideias deterministas sem fim
Sinceramente, não me incomodou tanto o fato de eu ter demorado quase duas semanas para realizar essa leitura (que nem é tão longa assim, mas tudo bem), o que de fato me irritou foi a sensação de que a história não avançou quase NADA desde o primeiro capítulo. Isto é, desde o começo (que conta a morte de Jacques e Raimundo) o romance defende as mesmíssimas ideias, que são constantemente repetidas de uma maneira absurdamente exaustiva.
Eu já tinha reparado nessa característica peculiar da escrita de Jorge Amado desde a minha leitura de "Capitães de Areia": o autor usa e reusa as mesmas imagens/metáforas ao longo do texto, o que dá um caráter lírico/poético à prosa. No entanto, nessa obra, esse tipo de construção torna-se maçante e cansativa, quase como uma enrolação sem fim.
A obra tem sim seus pontos positivos, tal como a incrível maneira como Jorge Amado retrata a vida repleta de misticidade dos marinheiros, misturando a representação crítica de uma realidade dura com as crenças populares, a exemplo da deusa Iemanjá/Janaína/Aiocá, que está presente (de maneira MUITO repetitiva) em toda narrativa como uma personagem ativa; assim como o cavalo branco que corre em noites de tempestades, o justiceiro Besouro, o tio Leôncio, entre outras figuras místicas que aparecem na história e que criam uma atmosfera muito interessante, fazendo-nos vivenciar profundamente a cultura do povo do cais, o que me lembrou o realismo fantástico de Gabo em Cem Anos de Solidão.
Mas a GRANDE personagem do livro, maior até mesmo que o casal de heróis Lívia e Guma, é o MAR, que é personificado e ocupa o papel principal de toda a narrativa, sendo o responsável por ditar o destino de todos os indivíduos desde o início do romance: todos os marítimos estão destinados a trabalhar no mar, tirar dele o sustento para sua família, e então repentinamente morrer (ou melhor, se encontrar com Iemanjá) durante uma tempestade, deixando sua mulher com filhos, que por sua vez também serão marítimos e também morrerão no mar (e o ciclo continua). Essa visão determinista da vida no cais é provavelmente a ideia que mais se repete ao longo do texto, desde seu início, como se toda a história não passasse de uma grande tese em defesa dessa submissão dos humanos do cais a esse destino intrínseco aos marinheiros. Essa falta de humanidade das personagens me irritou bastante: está certo que muitas delas tinham características próprias muito marcantes, mas eram todas muito caricaturadas e totalmente submetidas aos desejos carnais (principalmente sexuais), à corrupção humana (exemplo de Guma que cai no contrabando) e ao destino do cais, como se não fossem dotadas de vida/poder próprio para mudar isso.
O único desvio do texto e relação a essa "tese" materialista está na figura da professora Dulce, que sonha em tirar os marítimos desse destino e de vê-los com uma vida melhor e menos injusta, por isso fica a espera de que um milagre aconteça. Fica subentendido, por esse "milagre", uma revolução do proletariado, o que deixa claro o caráter tendencioso dessa obra, que defende de uma maneira muito superficial e forçada tal ideologia. Ou seja, o único ponto da narrativa que não defende o ponto de vista determinista na verdade defende outra ideologia (a comunista).
Todos esses pontos negativos à parte, resta do texto um romance épico bem envolvente, focado na história do herói Guma, um marinheiro de Salvador muito Valente (que é o nome de seu primeiro saveiro, inclusive) e conta seus primeiros casos amorosos, começando pela perturbadora visita de sua mãe, uma prostituta por quem ele inicialmente sente desejo antes de descobrir sua identidade, passando por Rosa Palmeirão, uma marítima astuta que vê Guma como um filho, até a sua prometida de Iemanjá: Lívia, sua esposa que lhe dá um filho e que constantemente sofre pelo medo da morte do marido e por isso deseja sair dessa vida o cais. O medo da morte é um dos assuntos mais repetitivos no texto, estando presente desde o primeiro capítulo, e que sempre é abordado juntamente com uma convicção dessa morte no mar: todos estão a espera do momento em que se juntarão à mãe e esposa Iemanjá. O romance também foca nas aventuras heróicas de Guma, desde quando aos 17 anos ele salva os tios de Lívia de um naufrágio, até quando ele morre salvando o contrabandista árabe e seu filho dos tubarões.
Apesar de parecer um verdadeiro Ulisses baiano, Guma se submete à corrupção moral do cais mais de uma vez ao longo da narrativa, com destaque à sua traição com Esmeralda (mulata amante de seu melhor amigo, o negro Rufino, que acaba matando a mulher e a si mesmo quando descobre da traição) enquanto Lívia estava grávida e ao seu alistamento no contrabando de seda quando precisou de dinheiro. Lívia, por sua vez, ocupa o papel de heroína perfeita após a previsível morte de Guma (que cedo ou tarde aconteceria), e ela também acaba se submetendo à lei do cais quando desiste de voltar para cidade com seus tios e assim se torna uma marítima (também subentende-se que será ela quem liderará o milagre/revolução dos marinheiros).
Apesar dos acontecimentos da narrativa serem interessantes, o texto é superficial em todos os aspectos: as personagens não possuem humanidade e estão totalmente submetidas aos seus instintos animais, à corrupção humana e à inevitável "lei do cais". Ao mesmo tempo, percebe-se claramente a tentativa de defesa de uma ideologia também superficial, tudo isso de maneira MUITO repetitiva.