mpettrus 24/12/2022
O Amor Gótico Destrutivo Azevediano
??Noite na Taverna? é uma antologia de contos do autor ultrarromântico brasileiro Álvares de Azevedo, também, a exemplo de ?Lira dos Vinte Anos? (já resenhado aqui por mim), foi publicado postumamente em 1855, três anos após a sua morte. Embora seja um livro de contos, seus capítulos estão interligados como em um romance. Possui um ritmo frenético, rápida de ler e com uma estética gótica muito marcante. Possuindo essa dinâmica rápida modelada para provocar choque no leitor, os contos têm a presença de temas imorais como orgias, necrofilia, relações incestuosas e adultérios violentos.
Geograficamente, a história se passa em lugar não definido, ao contrário do ambiente que é em uma taverna, daquelas clássicas em que temos uma taverneira servindo bebidas aos seus clientes, que podem ser de aventureiros até amantes que vão lá para se embebedar até desfalecer. Vários amigos se reúnem em um encontro regado a muita bebida e são desafiados a contar uma história que aconteceu em suas vidas. O narrador é onisciente e o livro é composto de sete partes, com cinco contos interligados.
? A primeira estória é de Solfieri e confesso que fiquei boquiaberto com o talento do autor em descrever uma jovem cataléptica de maneira tão angustiante e, por vezes, amedrontadora me fazendo sentir calafrios. Cheguei a sentir simpatia pelo narrador, que é um personagem interessante e que verbaliza suas emoções sem medo de se expressar. Porém, no decorrer da leitura, um grande Plot Twist me é revelado, e tal não foi a minha surpresa ante a revelação. E toda a perspectiva que eu tinha do livro mudou num giro completo de 360º completos. E mudou positivamente.
?Esse livro é primordialmente belo e legitimamente grotesco me confundindo, mas sobretudo, me fascinando. Aqui, o autor conseguiu desenvolver uma unidade mítica de dores e paixões profundas com as histórias de suas personagens masculinas como Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius Hermann e Johann. Entretanto, são as personagens femininas que me marcaram: a cataléptica, Ângela, Nauza, Eleonora e Giórgia. Essas personagens unem o grotesco e o sublime, compondo assim a binômia azevediana.
?A personagem Giórgia é carregada de metáfora e tem um dos desfechos mais surpreendente desses contos. Como uma personagem da escola literária do romantismo, ela representa o inverno e a primavera cheia de sonhos. Ela é a andorinha moribunda. O que me deixou estarrecido é que a personagem, ao invés de entregar-se e morrer de desgosto como é próprio da escola romântica, ela volta e vinga-se, sem entregar-se ao discurso amoroso, decidindo o futuro do amante matando-o, como faria uma sacerdotisa ante a infidelidade do seu amante. Eu me perguntei se o autor era ultrarromântico ou era pertencente a escola do realismo, e digo mais, do realismo-naturalismo, porque em uma primeira leitura, os contos não parecem conter as características do romantismo. Mas na realidade elas contém e bastante, como o apego a morte, a evasão da realidade, os sonhos e o pessimismo.
? Nos contos, cada uma das personagens femininas leva os narradores a uma vida de perdições e angústias, vivem amores fora dos padrões sociais tido como normais e habitualmente cristãos, desafiando o que seria a ordem vigente. Especialmente, esse aspecto transgressor, que se guia pelo afeto, caracterizando o gótico e o grotesco. Eu relacionei isso muito com a presença das prostitutas, consideradas objetos de um prazer desprezível e momentâneo. A idealização da mulher não está na pureza, na inocência ou qualquer outra virtude, mas sim na devassidão.
Pude perceber na leitura que as narrativas dos contos se apoiam na vertente gótica do romantismo. Logo, notei uma série de elementos pagãos, símbolos da natureza e da contravenção romântica, além de cristãos, como a necessidade de encontrar a plenitude. Porém, paradoxalmente a esse objetivo, os narradores estão imersos não somente numa melancolia devastadora, mas acometidos por um efeito que só o reviver da memória pode causar: o sangrar cadenciado das feridas mal cicatrizadas. Os homens dos contos me pareceram jogados num fundo de um poço, metaforizado em fastio, desastre e a não consumação da plenitude, questionando as origens da transitoriedade de suas vidas.
?A leitura desse livro do Azevedo me mostrou uma perspectiva diferente do seu livro anterior que eu li, o famoso ?Lira dos Vinte Anos?. Aqui a prosa azevediana trouxe algo incomum na literatura romântica, que reside na sua abordagem do amor. O amor não romântico, mas o amor erótico, cheio de desvios, não necessariamente fechados nos moldes divinos, mas o amor expressado, verbalizado pelo e através do corpo, por meio do corpo, num processo de canalização constante. O amor azevediano é destrutivo e sua validade encontra-se na dor, pois é gótico, ou seja, obscuro e desregrado.
? O amor gótico azevediano é uma pulsão de vida ou de morte, diante da destruição mediante a mal-sucedida transformação de suas vidas, porque ela, a amante se vai e ele, que sobrevive, para nos contar depois, cai em desgraça, histerias e neuroses, em deturpações afetivas que carrega pelo resto da vida. Logo, a desgraça dos homens é ficar diante da doença amorosa mais explícita: o amor que é dado como cura, ao ser tirado, torna-se doença. Que ideia genial do Azevedo contar estórias de terror para falar sobre o amor, o terror dos homens do seu tempo, do mal do século. Extraordinário!