milliaways 28/05/2023
Esse livro deixa uma coisa bem clara em toda a sua extensão:
Um escritor consegue provar absolutamente qualquer coisa que ele quiser na sua obra, já que ele mesmo escreve as condições ideais para que sua ideia seja provada.
Dá pra ver claramente porque esse livro é a fundação do realismo: Flaubert coloca na sua protagonista o maior exemplo da beleza europeia: uma mulher branca, de olhos claros e cabelos ruivos. Essa aparência é destruída por tudo que o autor odeia: Romances idealizados de paixões medievais, adultérios e o consumismo do capitalismo inicial. Essa destruição é visível, graficamente: Sua aparência bela de noiva no leito de morte é destruída quando Charles levanta o véu de sua falecida, proferindo um grito de horror; um líquido preto sai da boca de Emma quando seu corpo é levantado para ser adornado pela coroa de flores, provavelmente resultado da destruição de seus órgãos pelo veneno. É visível essa referência no cadáver do monge presente na obra de Dostoiévski, mas o velho russo é infinitamente superior em sua escrita.
Duas ideias firmes são estabelecidas dentro do realismo de Flaubert, e isso acaba provando que mudar diametralmente a visão das coisas não traz tanta inovação quanto parece, e o realismo se torna tão previsível quanto seu predecessor.
O primeiro pilar é: A felicidade real ou não existe, ou só existe pra quem é ativamente pérfido em suas ações. Emma entra no casamento com ideais fantásticos de literatura, para ser brutalmente desenganada. Isso, porém, alimenta sua sede por prazeres, que é saciada no adultério e no consumismo desenfreado. O adultério apenas traz consequências psicológicas de mais desengano, ao perceber que seus amantes não eram cavaleiros brancos. Mas as dívidas adquiridas levam a protagonista ao suicídio. Não existe possibilidade de felicidade na vida de Emma.
Charles, por outro lado, é um homem bom, honesto e justo, com suas pequenas ambições de pequeno burguês. Emma o vê como o pior dos homens, o menos ambicioso e seu maior erro. Charles, no final, não encontra felicidade, descobre que foi traído por sua esposa durante toda a vida, não sucede como médico e morre de desgosto. A conclusão é que: um homem bom e justo não consegue encontrar felicidade, não merece o amor e morrerá como um ímpio.
O único que alcança a felicidade na obra é o farmacêutico Homais: Um homem falso, que vive de aparências e bajulações, acaba por escrever sobre qualquer mínimo assunto que possa angariar popularidade a si mesmo. Por fim, recebe a cruz de honra, símbolo maior de sua ascensão pessoal.
O que deveríamos perceber é que esse tipo de destino terrível, tanto para os justos como Charles ou para os sonhadores como Emma, se deve principalmente ao capitalismo burguês da época. Mas é extremamente sutil na obra de Flaubert. O que vem aos olhos é que isso é a naturalidade, que os bons e sonhadores só merecem o desterro porque "assim é a vida", numa espécie de naturalização da punição que tende ao pensamento fascista de que "a culpa é dos humanos".
O segundo pilar é intimamente relacionado com o primeiro, a mais comum deturpação da Lei de Murphy: Tudo de ruim que pode acontecer, acontecerá. E com o detalhe da forma mais ridícula e humilhante possível aos personagens. Isso se torna um problema quando esse pilar se torna a regra: se no romantismo e nos romances de cavalaria sempre se espera um final feliz, no realismo sempre se espera o pior final possível. Se outrora a previsibilidade do fim era motivo de esperança ao ler um livro, agora se torna um motivo de melancolia, onde sempre devemos esperar o pior, decepcionados, mas não surpresos.
Querendo ou não, Madame Bovary acaba como uma grande aplicação dos conceitos de Stendhal com no mínimo um embelezamento estilístico. Válido mencionar novamente o comentário de Maria Rita Kehl sobre como a obra fala do fardo da mulher ser dona de casa no século 18, com o êxito de mostrar Bovary como a vontade das mulheres de seguirem seus sonhos fora do casamento; e outras críticas positivas de estilo a Flaubert. São comentários válidos e de excelente leitura. Eu vejo como uma obra padrão do realismo, cujo êxito é dito no comentário de Kehl: A mulher tem sonhos e corre atrás deles. Mas Flaubert diz mais: não há felicidade no final da busca dos sonhos. Isso é a definição perfeita do realismo.