spoiler visualizarDarkpookie 30/08/2020
Comentários e trechos
O realismo foi um movimento literário e artístico que teve início em meados do século XIX, na França. A vertente se manifestou principalmente na literatura, sendo seu marco inicial o romance realista Madame Bovary, de Gustave Flaubert, em 1857.
Essa obra narra a vida e as angústias da Emma, a Sra. Bovary e seu adultério cometido contra Charles, o Sr. Bovary. A história em si é bem interessante, contendo partes boas e partes chatas, já que o Flaubert faz longas descrições do ambiente e dos objetos que aparecem na história.
A Emma, desde o início de suas ideias irreais sobre relacionamentos, onde eles precisariam ser perfeitos e extremamente românticos (tanto no sentido atual quanto literário, Flaubert tece diversas críticas ao Romantismo usando a Emma como portadora das falas), se mostrou uma personagem muito irritante e reprovável. Ainda que o autor, escrevendo esse livro tivesse na mente a vontade de revolucionar a literatura, criticando a Escola vigente e também à classe burguesa, me parece repleta de moralismos, afinal, a protagonista Emma é uma leitora assídua de livros e isso pode soar como “Veja só, mulheres que leem, tem interesses próprios e independência do marido podem fazer todas as atrocidades que estou narrando”, mas não sei tanto sobre a vida do autor, preciso pesquisar melhor.
A Bovary é uma pessoa bem arrogante e se sente superior ao seu marido, mais esperta que ele. O Bovary, pelo contrário, é apaixonado pela Emma e isso o torna vulnerável e até inocente perante ela. Entretanto, como realmente o livro faz parte do Movimento Realista é de se esperar que não se tenham personagens completamente certas ou erradas. A Emma também tem seus períodos de fragilidade, ainda que isso não a exima da culpa do adultério ou da ostentação do dinheiro do casal, que levou o marido a praticamente falir. A Bovary, em busca de saciar seus desejos de uma vida vaidosa, gasta a torto e a direito, assume dívidas e compra futilidades. Em alguns momentos se rende a vida religiosa na tentativa de mudar sua personalidade, mas acaba morrendo na arrogância e indiferença. O único que me deu pena e o que tornou o final da história extremamente triste foi o Charles, pois desde o início ele amava sua esposa e tentou dar tudo o que ela sempre quis, mas não foi o suficiente e ela o desprezava pelas costas chamando-o de medíocre, enquanto ele vivia feliz achando que os sentimentos que tinha por ela eram recíprocos. É claro que eu entendo a insatisfação dela com o marido e a impossibilidade naquela época de uma mulher querer o divórcio, mas ainda acho traição algo vil.
Flaubert, ainda que muito descritivo, conseguiu criar ótimas personagens e acho que nunca senti tanta raiva e pena lendo um livro. Nem sequer culpo os homens com quem a Emma traiu o Charles, ainda que eles sejam responsáveis também, de tão desprezível que essa mulher foi. Para fundamentar meus pontos deixo a seguir trechos interessantes ou importantes da obra (não são correspondentes a edição que li da Nova Alexandria, e sim a edição da Penguin que encontrei na internet):
“Emma sentiu primeiro um grande espanto, depois teve vontade de se entregar, para saber que coisa era ser mãe. Mas, não podendo gastar o que queria, ter um berço em forma de barquinho com cortinas de seda cor-de-rosa e toucas bordadas, renunciou ao enxoval num acesso de amargura, e encomendou tudo de uma só vez a uma operária da aldeia, sem escolher nada nem discutir. Ela não se divertiu, pois, com esses preparativos em que a ternura das mães se põe em apetite, e sua afeição, desde a origem, foi talvez atenuada em alguma coisa.
Entretanto, como Charles, em todas as refeições, falava do bebê, logo ela se pôs a pensar nisso de modo mais contínuo.
Ela desejava um filho. Ele seria forte e moreno, ela o chamaria de Georges; e essa ideia de ter como filho um macho era como a revanche esperada de todas as suas impotências passadas. Um homem, pelo menos, é livre; pode percorrer as paixões e os lugares, atravessar os obstáculos, consumir as felicidades mais distantes. Mas uma mulher é impedida continuamente. Inerte e flexível a uma só vez, tem contra si as molezas da carne com as dependências da lei. Sua vontade, como o véu de seu chapéu preso por um cordão, palpita a todos os ventos; há sempre algum desejo que carrega, alguma conveniência que detém.”
“As felicidades futuras, como as margens dos trópicos, projetam sobre a imensidão que as precede as suas molezas natais, uma brisa perfumada, e a gente adormece nessa embriaguez sem sequer inquietar-se com o horizonte que não se avista.”
“O amor, acreditava ela, devia chegar de repente, com grandes brilhos e fulgurações — tufão dos céus que cai sobra a vida, revira-a, arranca as vontades como folhas e carrega para o abismo o coração inteiro. Não sabia que, no terraço das casas, a chuva faz lagos quando as calhas estão entupidas, e ela permaneceu assim em sua segurança, quando descobriu subitamente uma rachadura na parede.”
“Que loucura!, dizia ele consigo, e como chegar até ela?
Ela lhe pareceu, pois, tão virtuosa e inacessível, que toda esperança, mesmo a mais vaga, o abandonou.
Mas, por essa renúncia, ele a colocava em condições extraordinárias. Ela se apartou, para ele, das qualidades carnais de que ele nada teria para obter; e ela foi, no seu coração, subindo sempre e se destacando, à maneira magnífica de uma apoteose que se vai a voar. Era um desses sentimentos puros que não tolhem o exercício da vida, que se cultivam porque são raros, e cuja perda afligiria mais do que a posse alegraria.
Emma emagreceu, suas faces empalideceram, o rosto se alongou. Com suas faixas pretas, seus grandes olhos, nariz reto, andar de passarinho, e sempre silenciosa agora, não parecia acaso atravessar a existência mal tocando nela, e carregar na fronte a marca vaga de alguma predestinação sublime? Estava tão triste e tão calma, tão doce às vezes e tão reservada, que a gente se sentia, perto dela, tomado por um encanto glacial, como se estremece nas igrejas sob o perfume das flores mesclado ao frio dos mármores. Nem os outros escapavam a essa sedução. O farmacêutico dizia:
— É uma mulher de grandes meios e que não ficaria mal colocada numa subprefeitura.
As burguesas admiravam a sua economia, os clientes a sua polidez, os pobres a sua caridade.
Mas ela estava cheia de ânsias, de raiva, de ódio. Essa roupa de pregas retas escondia um coração subvertido, e esses lábios tão pudicos não contavam a sua tormenta. Estava enamorada de Léon e buscava a solidão, a fim de poder mais à vontade deleitar-se com a sua imagem. A vista de sua pessoa perturbava a volúpia dessa meditação. Emma palpitava ao ruído dos passos dele; depois, em sua presença, a emoção caía, e só lhe restava em seguida um imenso espanto que terminava em tristeza.”
“Mas quanto mais Emma se dava conta de seu amor, mais o recalcava, a fim de que não aparecesse e para diminuí-lo. Ela gostaria que Léon duvidasse dele; e imaginava acasos, catástrofes que facilitassem isso. O que a retinha, por certo, era a preguiça ou o espanto, e o pudor também. Achava que o tinha repelido para muito longe, que não era mais tempo, que tudo estava perdido. Depois o orgulho, a alegria de se dizer: “Eu sou virtuosa”, e de se olhar no espelho fazendo poses resignadas, a consolava um pouco do sacrifício que acreditava estar fazendo.”
“O que a exasperava era que Charles não parecia perceber o seu suplício. A convicção que ele tinha de estar fazendo-a feliz lhe parecia um insulto imbecil, e a sua segurança a esse respeito, ingratidão. Para quem, pois, ela era cordata? Não era ele o obstáculo a toda felicidade, a causa de toda miséria e como fecho pontudo dessa correia complexa que a prendia por todos os lados?
Portanto, ela descarregou só sobre ele o ódio copioso que resultava de seus aborrecimentos, e cada esforço para minorá-lo só servia para aumentá-lo; pois essa pena inútil se acrescentava aos outros motivos de desespero e contribuía ainda mais ao afastamento. Sua própria doçura por si só dava-lhe rebeliões. A mediocridade doméstica a levava a fantasias luxuosas, a ternura matrimonial a desejos adúlteros. Quisera que Charles batesse nela, para poder justamente detestá-lo, vingar-se dele. Espantava-se às vezes com as conjecturas atrozes que lhe chegavam à mente; e tinha de continuar sorrindo, ouvindo repetir que era feliz, fazer de conta que o era, deixá-lo acreditar!”
“Ela tinha essa incoerência de coisas comuns e rebuscadas, em que o vulgo, habitualmente, acredita entrever a revelação de uma existência excêntrica, as desordens do sentimento, as tiranias da arte, e sempre certo desprezo pelas convenções sociais, o que o seduz ou exaspera.”
“Emma, diante dele, olhava-o; não partilhava a sua humilhação, ela experimentava outra: era de ter-se imaginado que tal homem pudesse valer alguma coisa, como se vinte vezes já ela não tivesse suficientemente percebido a sua mediocridade.
Charles passeava para lá e para cá, no quarto. Suas botas estalavam no assoalho.
— Sente-se — disse ela —, você está me irritando!
Ele sentou-se.
E como havia ela feito (ela que era tão inteligente!) para se enganar uma vez mais? De resto, por que deplorável mania ter assim estragado a sua existência em sacrifícios contínuos? Ela lembrou-se de todos os seus instintos de luxo, de todas as privações de sua alma, as baixezas do casamento, da vida caseira, dos seus sonhos caindo na lama como andorinhas feridas, tudo o que ela tinha desejado, tudo o que tinha recusado, tudo o que teria podido ter! e por quê? por quê?
No meio do silêncio que enchia a aldeia, um grito lancinante atravessou o ar. Bovary ficou pálido de desmaiar. Ela franziu as sobrancelhas num gesto nervoso, depois continuou. Era para ele, entretanto, para aquele ser, para aquele homem que não compreendia nada, que não sentia nada! Pois estava ali, bem tranquilamente, e sem desconfiar sequer que o ridículo de seu nome ia doravante sujá-la como a ele. Ela tinha feito esforços para amá-lo e tinha se arrependido a chorar por ter cedido a outro.”
“Tudo nele a irritava agora, o seu rosto, o seu terno, o que ele não dizia, a sua pessoa inteira, a sua existência enfim. Ela arrependia-se como de um crime, de sua virtude passada, e o que restava ainda desmoronava sob os golpes furiosos de seu orgulho. Ela se deleitava com todas as ironias más do adultério triunfante. A lembrança do amante voltava a ela com atrações vertiginosas. Ela lançava nisso a alma, arrastada rumo a essa imagem por um entusiasmo novo; e Charles parecia-lhe tão desligado de sua vida, tão ausente para sempre, tão impossível e aniquilado, como se ele fosse morrer e agonizasse sob os seus olhos.”
“— Me dê um beijo, querida!
— Deixe-me! — fez ela, toda vermelha de cólera.
— O que é que você tem? O que é que você tem? — repetia ele estupefato. — Acalme-se! Volte a si!… Você sabe que eu a amo!… Venha!
— Basta! — exclamou ela com um ar terrível.
E escapando da sala, Emma fechou a porta com tanta força que o barômetro saltou da parede e se espatifou no chão.
Charles jogou-se na poltrona, transtornado, procurando o que ela podia ter, imaginando uma doença nervosa, chorando, e sentindo vagamente circular em torno de si alguma coisa de funesto e incompreensível.”
“Rodolphe chegava; era para dizer-lhe que ela estava se enfastiando, que o seu marido era odioso e a existência dela horrível!
— Posso fazer alguma coisa? — exclamou ele um dia, impaciente.
— Ah! se você quisesse!…
Ela estava sentada no chão, entre os seus joelhos, com o cinto solto, o olhar perdido.
— O que, então? — disse Rodolphe.
Ela suspirou.
— A gente iria viver noutro lugar… em algum lugar…
— Você está louca, realmente! — disse ele rindo. — É possível?
Ela voltou à baila; ele pareceu não estar entendendo e desviou a conversa.
O que ele não entendia era toda essa perturbação numa coisa tão simples como o amor. Ela tinha um motivo, uma razão, e como um auxiliar ao seu apego.
Essa ternura, de fato, a cada dia ia crescendo mais sob a repulsa do marido. Quanto mais ela se entregava a um, mais execrava o outro; jamais Charles lhe parecera tão desagradável, ter os dedos tão quadrados, o espírito tão pesado, as maneiras tão comuns quanto depois de seus encontros com Rodolphe, quando eles se achavam juntos.”
“Ele tinha escutado tantas vezes essas coisas, que já não tinham para ele nada de original. Emma era parecida com todas as amantes; e o encanto da novidade, caindo pouco a pouco como uma roupa, deixava ver a nu a eterna monotonia da paixão, que tem sempre as mesmas formas e a mesma linguagem.”
“Enfim, o sábado, a antevéspera, chegou.
Rodolphe veio à noite, mais cedo que de costume.
— Está tudo pronto? — perguntou-lhe ela.
— Está.
Então deram a volta a uma platibanda e foram sentar-se perto do terraço, na beirada da mureta.
— Você está triste — disse Emma.
— Não, por quê?
E, no entanto, ele olhava para ela de maneira singular, de um jeito terno.
— É por estar indo embora? — retomou ela —, por abandonar as suas afeições, a sua vida? Ah! eu entendo… Mas eu não tenho nada neste mundo! Você é tudo para mim. Também eu serei tudo para você, serei para você uma família, uma pátria; cuidarei de você, amarei você.
— Como você é encantadora! — disse ele segurando-a nos seus braços.
— Verdade? — disse ela com um riso de volúpia. — Você me ama? Jure então!
— Se eu amo você! Se eu amo você! Mas eu adoro você, meu amor!”
“— Até amanhã — exclamou ela.
Ele já estava do outro lado do riacho e andava depressa pelo prado.
Ao cabo de alguns minutos, Rodolphe parou; e, quando a viu com o vestido branco pouco a pouco a desaparecer na sombra como um fantasma, foi tomado de uma batida tão forte do coração, que se apoiou em uma árvore para não cair.
— Que imbecil eu sou! — murmurou ele praguejando espantosamente. — Não importa, era uma bonita amante!
E, de imediato, a beleza de Emma, com todos os prazeres daquele amor, reapareceram-lhe. Primeiro se enterneceu, depois revoltou-se contra ela.
— Pois, afinal de contas — exclamava gesticulando —, não posso me expatriar, assumir a responsabilidade de uma criança.
Dizia essas coisas para se assegurar mais.
— E, aliás, os estorvos, a despesa… Ah! Não, não, mil vezes não! Isso seria burrice demais!”
“Charles voltou, pois, uma vez mais a essa questão do piano. Emma respondeu com azedume que era melhor vendê-lo. Aquele pobre piano que lhe havia causado tantas vaidosas satisfações, vê-lo ir-se embora, era para Bovary como o indefinível suicídio de uma parte de si mesma!
— Se você quisesse… — dizia ele —, de tempos em tempos, uma aula, isso não seria, afinal de contas, extremamente ruinoso.
— Mas aulas — replicava ela —, só são proveitosas quando seguidas.
E aí está como ela deu um jeito para obter do esposo a permissão de ir à cidade, uma vez por semana, para encontrar-se com o seu amante. Achou-se até, ao fim de um mês, que ela tinha feito progressos consideráveis.”
“Que calma naquele tempo! Como anelava os inefáveis sentimentos do amor que tentava, segundo os livros, imaginar!
Nos primeiros meses de casamento, os seus passeios a cavalo na floresta, o visconde que valsava, e Lagardy cantando, tudo voltou a passar diante de seus olhos… E Léon pareceu-lhe de repente tão distante quanto os outros.
— Eu o amo entretanto! — dizia-se ela.
Não importa! Não estava feliz, nunca tinha estado. De onde vinha então essa insuficiência da vida, essa podridão instantânea das coisas em que ela se apoiava? Mas, se havia em algum lugar um ser forte e belo, uma natureza valorosa, cheia, ao mesmo tempo, de exaltação e de refinamento, um coração de poeta sob a forma de anjo, lira com cordas de bronze, soando para o céu epitalâmios elegíacos, por que, porventura, ela não o encontraria? Oh! que impossibilidade! Nada, aliás, valia a pena de uma procura; tudo mentia! Cada sorriso escondia um bocejo de tédio, cada alegria uma maldição, cada prazer o seu desgosto, e os melhores beijos não deixavam nos lábios senão uma irrealizável vontade de uma volúpia mais alta.”
“A casa estava bem triste, agora! Viam-se sair dela fornecedores com aspectos furiosos. Havia lenços se arrastando sobre o fogão; e a pequena Berthe, para grande escândalo da sra. Homais, usava meias furadas. Se Charles, timidamente, arriscava uma observação, ela respondia com brutalidade que não era culpa sua!
Por que essas exaltações? Ele explicava tudo por sua antiga doença nervosa; e, culpando-se por ter tomado como defeitos as suas enfermidades, acusava-se de egoísmo, tinha vontade de correr para beijá-la.
— Oh! Não — dizia-se ele —, eu a desagradaria!
E ele ficava.”
“Eles se conheciam demais para ter aqueles arroubos da possessão que centuplicam a sua alegria. Ela estava tão enfarada dele quanto ele estava fatigado dela. Emma reencontrava no adultério todas as platitudes do casamento.
Mas como poder livrar-se dele? Depois, por mais que se sentisse humilhada com a baixeza de tal felicidade, mantinha-a por hábito ou por corrupção; e, a cada dia, mais se encarniçava nela, bloqueando toda felicidade por querê-la demasiado grande. Ela acusava Léon de suas esperanças frustradas, como se ele a tivesse traído; e até desejava uma catástrofe que levasse à separação, pois que não tinha coragem de decidir-se.
Nem por isso ela deixava de escrever-lhe cartas amorosas, em virtude da ideia de que uma mulher deve sempre escrever ao seu amante.
Mas, ao escrever-lhe, ela percebia um outro homem, um fantasma feito de suas mais ardentes lembranças, de suas mais belas leituras, de suas mais fortes cobiças; e ele se tornava finalmente tão verdadeiro, e acessível, que ela palpitava maravilhada, sem poder, entretanto, imaginá-lo nitidamente, de tanto que ele se perdia, como um deus, sob a abundância de seus atributos. Ele habitava uma região azul onde as escadas de seda se balançavam em balcões, ao sopro das flores, ao luar. Ela o sentia perto de si, ele ia vir e raptá-la toda num beijo. Em seguida caía para trás, alquebrada; pois esses arroubos de amor vago a cansavam mais do que os grandes deboches.”
“Entretanto, à força de comprar, de não pagar, de tomar emprestado, de subscrever promissórias, depois, de renovar essas promissórias, que inchavam a cada novo vencimento, ela tinha acabado por preparar ao sr. Lheureux um capital, que ele aguardava impacientemente para as suas especulações.
Ela apresentou-se a ele com um ar descontraído.
— Você sabe o que está me acontecendo? É uma brincadeira, sem dúvida!
— Não.
— Como assim?
Ele se voltou lentamente e lhe disse cruzando os braços:
— Estava pensando, minha senhorinha, que eu ia, até a consumação dos séculos, ser seu fornecedor e banqueiro por amor a Deus? É preciso que eu recupere o que desembolsei, sejamos justos!
Ela protestou sobre a dívida.
— Ah! Tanto pior! O tribunal a reconheceu! Existe julgamento! Apontaram a senhora! Aliás, não sou eu, é Vinçart.
— Será que você não poderia…?
— Oh! Absolutamente nada.
— Mas…, entretanto…, raciocinemos.
Ela ficou perdida; não tinha sabido de nada… era uma surpresa…
— De quem é a culpa? — disse Lheureux saudando-a ironicamente. — Enquanto estou, eu, a trabalhar como um negro, a senhora saboreia o bom tempo.— Ah! Não há moral!
— Isso nunca prejudica — replicou ele.
Ela foi covarde, suplicou-lhe; até apoiou a sua bonita mão branca e longa sobre os joelhos do comerciante.
— Deixe-me em paz! Parece que está querendo me seduzir!
— Você é um miserável — exclamou ela.
— Oh! oh! como a senhora está indo longe! — retomou ele rindo.
— Eu farei saber quem você é. Direi ao meu marido…
— Ora, pois! Eu lhe mostrarei alguma coisa, ao seu marido!
E Lheureux tirou do cofre-forte o recibo de mil e oitocentos francos que ela havia dado quando do desconto de Vinçart.
— A senhora acredita — acrescentou —, que ele não compreenda o seu pequeno roubo, esse pobre e caro homem?
Ela desabou, mais atingida do que se o tivesse sido por uma porretada.”
“Ela partiu para Rouen no dia seguinte, domingo, a fim de ir falar com todos os banqueiros de quem conhecia os nomes. Eles estavam no campo ou viajando. Ela não se deu por vencida; e aos que pôde encontrar, pediu dinheiro, protestando que estava precisando, que lhes devolveria. Alguns riram na cara dela; todos recusaram.
Às duas horas, ela correu à casa de Léon, bateu à porta. Ninguém abriu. Finalmente ele apareceu.
— O que é que a traz aqui?
— Isso o incomoda?
— Não…, mas…
E ele confessou que o proprietário não gostava que se recebessem “mulheres”.
— Preciso falar com você — retomou ela.
Então ele pegou a chave. Ela o parou.
— Oh! Não, lá, em nossa casa.
E foram para o quarto deles, no Hôtel de Boulogne.
Ela tomou, ao chegar, um grande copo d’água. Estava muito pálida. Disse a ele:
— Léon, você vai me prestar um serviço.
E, sacudindo-o com as duas mãos, que apertava com força, acrescentou:
— Escute, eu preciso de oito mil francos!
— Mas você enlouqueceu!
— Ainda não!
E, logo, contando a história da penhora, expôs-lhe o seu desespero; porque Charles ignorava tudo, a sogra a detestava, o velho Rouault não podia fazer nada; mas ele, Léon, ia pôr-se a correr para conseguir essa indispensável quantia…— Como você quer…?
— Que covarde você está bancando! — exclamou ela.
[...]
— Se eu estivesse no seu lugar, eu bem que encontraria!
— Onde então?
— Em seu escritório!
E olhou para ele.
Uma ousadia infernal escapava de seus olhos inflamados, e as pálpebras se aproximavam de maneira lasciva e encorajadora — tanto que o jovem se sentiu enfraquecer sob a muda vontade daquela mulher que lhe aconselhava um crime.”
“— De onde vem — retomou ele — que a senhora não veio me procurar?
— Não sei ao certo — disse ela.
— Por que, hein?… Eu talvez lhe metesse medo? Sou eu, ao contrário, que deveria me queixar! A gente mal se conhece! Eu lhe sou, entretanto, muito dedicado; a senhora não terá mais dúvidas, espero?
Ele estendeu a mão, pegou a dela, cobriu-a com um beijo voraz, depois a manteve sobre o joelho; e brincava com os seus dedos delicadamente, enquanto lhe contava mil doçuras.
Sua voz insossa sussurrava, como um riacho que corre; uma faísca saltava de sua pupila através do reflexo dos óculos, e suas mãos avançavam dentro das mangas de Emma para apalpar-lhe os braços. Ela sentia em sua face o sopro de uma respiração ofegante. Aquele homem a desagradava horrivelmente.
Ela levantou-se num salto e disse-lhe:
— Meu senhor, estou esperando!
— O quê? — disse o notário, que ficou de repente extremamente pálido.
— Aquele dinheiro.
— Mas…
Depois, cedendo à irrupção de um desejo demasiado forte:
— Pois bem, sim!…
Ele se arrastava de joelhos na direção dela, sem precauções com o seu roupão.
— Por favor, fique! Eu a amo!
Ele agarrou-a pela cintura.
Uma onda de rubor subiu rápida ao rosto da sra. Bovary. Ela recuou com um ar terrível, bradando:
— Está se aproveitando impudentemente de minha desgraça, meu senhor! Estou para ser lamentada, mas não para ser vendida!
E ela saiu.
O tabelião ficou muito estupefato, com os olhos fixados em suas belas pantufas de tapeçaria. Esta visão no final o consolou. Aliás, ele cogitou que uma aventura dessas o teria levado longe demais.
— Que miserável! Que sujeitinho!… Que infâmia! — dizia-se ela, fugindo com passos nervosos sob os choupos da estrada. O desapontamento do insucesso reforçava a indignação de seu pudor ultrajado; parecia-lhe que a Providência insistia em persegui-la e, realçando-se de orgulho, nunca tinha tido tanta estima por si mesma, nem tanto desprezo pelos outros. Algo de belicoso a transportava. Tinha vontade de bater nos homens, de cuspir-lhes no rosto, de esmagá-los todos; e continuava seguindo adiante rapidamente, pálida, tremendo, enraivecida, perscrutando com olhos em pranto o horizonte vazio e como se deleitando com o ódio que a sufocava.
[...]
Ela tinha tentado de tudo. Não havia mais nada a fazer agora; e, quando Charles aparecesse, ela ia então lhe dizer:
— Retire-se. Esse tapete em que você está andando não é mais nosso. Da sua casa, você não tem mais nenhum móvel, nenhum alfinete, nenhuma palha, e fui eu que arruinei você, pobre homem!
Então seria um grande soluço, depois ele choraria abundantemente e, finalmente, passada a surpresa, ele perdoaria.
— Sim — murmurava ela rangendo os dentes —, ele me perdoará, ele a quem não bastaria oferecer-me um milhão para que eu o desculpe de ter me conhecido… Jamais! Jamais!
Essa ideia de superioridade de Bovary sobre ela exasperava-a. Depois, confessasse ela ou não confessasse, daqui a pouco, logo mais, amanhã, ele não saberia menos da catástrofe; então, era preciso esperar essa horrível cena e aguentar o peso de sua magnanimidade.”
“Pois ele ia vir. Com certeza! Teria conseguido dinheiro. Mas talvez ele fosse lá, não duvidando da presença dela; e ela mandou a ama correr à sua casa para trazê-lo.
— Vá rápido!
— Mas minha cara senhora, estou indo! Estou indo!
Admirava-se, agora, de não ter pensado nele primeiro; ontem, ele tinha empenhado a palavra, não iria faltar; e já se via na casa de Lheureux, espalhando sobre a escrivaninha as três notas de dinheiro. Depois seria preciso inventar uma história que explicasse as coisas a Bovary. Qual?
[...]
— Não há ninguém na sua casa.
— Como?
— Oh! Ninguém! E o patrão está chorando. Está chamando pela senhora. Estão procurando a senhora.
Emma não respondeu nada. Estava ofegante, girando os olhares em torno de si, enquanto a camponesa, assustada com o seu rosto, recuava, instintivamente, achando que ela estava louca. De repente, ela bateu na cabeça, soltou um grito, pois a lembrança de Rodolphe, como um grande relâmpago numa noite escura, tinha lhe passado pela alma. Ele era tão bom, tão delicado, tão generoso! E, aliás, se hesitasse em lhe prestar esse serviço, ela saberia constrangê-lo lembrando num piscar de olhos o seu amor perdido. Ela foi, portanto, para La Huchette, sem se dar conta de que corria a oferecer-se ao que a tinha, havia pouco, exasperado tanto, nem desconfiar o mínimo do mundo dessa prostituição.”
“Ele a puxou para seu colo, e acariciava com as costas da mão o seu toucado liso, onde, no clarão do crepúsculo, rebrilhava como uma flecha de ouro um último raio do sol. Ela inclinava a fronte; ele acabou por beijá-la nas pálpebras, bem suavemente, com a ponta dos lábios.
— Mas você chorou! — disse ele. — Por quê?
Ela explodiu em soluços. Rodolphe acreditou que era a explosão de seu amor; como ela se mantinha calada, ele tomou esse silêncio como sendo um último pudor, e então exclamou:
— Ah! perdoe-me! Você é a única que me agrada. Fui imbecil e mau! Eu amo você, eu a amarei sempre!… O que é que você tem? Diga!
Ele se punha de joelhos.
— Pois bem!… Eu estou arruinada, Rodolphe! Você vai me emprestar três mil francos!
— Mas… mas… — disse ele levantando-se aos poucos, enquanto a sua fisionomia tomava uma expressão séria.
— Você sabe — continuava ela rapidamente — que o meu marido tinha aplicado toda a sua fortuna num tabelião; ele fugiu. Tomamos dinheiro emprestado; os clientes não pagavam. De resto, a liquidação ainda não terminou; teremos dinheiro mais tarde. Mas, hoje, por falta de três mil francos, vão nos penhorar; é agora, neste instante mesmo; e, contando com a sua amizade, eu vim.
Ah!, pensou Rodolphe, que ficou muito pálido de repente, foi por isso que ela veio!
Finalmente ele disse com jeito calmo:
— Eu não os tenho, querida senhora.
Ele não estava mentindo. Se os tivesse, tê-los-ia dado, sem dúvida, embora seja geralmente desagradável fazer tão belas ações: um pedido pecuniário sendo, de todas as borrascas que desabam sobre um amor, a mais fria e a mais desarraigadora.
Ela ficou primeiro alguns minutos olhando para ele.
— Você não os tem!
Repetiu várias vezes:
— Você não os tem!… Eu deveria ter me poupado esta última vergonha. Você nunca me amou! Você não vale mais do que os outros!
Ela se traía, se perdia.
Rodolphe interrompeu-a, afirmando que se achava, ele próprio, “constrangido”.
— Ah! Lamento você! — disse Emma. — Sim, consideravelmente!…
E fixando o olhar numa carabina com incrustações que brilhava na panóplia:
— Mas, quando se é tão pobre, não se põe prata na coronha da espingarda! Não se compra um relógio de parede com incrustações de escama! — continuava ela mostrando o relógio de Boulle —* nem apitos de prata dourada para os chicotes — ela os tocava! — Nem berloques para o relógio! Oh! Nada lhe falta! Até um porta-licores no quarto; porque você se ama, você vive bem, tem um castelo, mulheres, bosques; você caça a cavalo com cães, viaja a Paris… Eh! Ainda que fosse só isso — exclamou ela pegando sobre a lareira as suas abotoaduras —, a menor dessas ninharias! Pode-se fazer dinheiro com isso!… Oh! Não as quero! Guarde-as!
E lançou longe as duas abotoaduras, cuja corrente de ouro se rompeu ao bater contra a parede.
— Mas eu, eu lhe teria dado tudo, teria vendido tudo, teria trabalhado com as minhas mãos, teria mendigado pelas estradas, por um sorriso, por um olhar, para ouvir você dizer: “Obrigado!”. E você fica tranquilamente na sua poltrona, como se já não me tivesse feito sofrer bastante? Sem você, você bem sabe, eu teria podido viver feliz! Quem forçava você a isso? Era um desafio? Você me amava, entretanto, você o dizia… E há pouco ainda… Ah! teria sido melhor me expulsar! Tenho as mãos quentes dos seus beijos, e aí está o lugar, no tapete, em que você jurava a meus joelhos uma eternidade de amor. Você me fez acreditar nisso; por dois anos, você me arrastou no sonho mais magnífico e mais suave!… Hein! Os nossos projetos de viagem, você se lembra? Oh! a sua carta, a sua carta! Ela me rasgou o coração!… E depois, quando venho ao encalce dele, dele, que é rico, feliz, livre! para implorar um socorro que qualquer um prestaria, suplicante e trazendo-lhe toda a minha ternura, ele me rechaça, porque isso lhe custaria três mil francos!
— Eu não os tenho! — respondeu Rodolphe com aquela calma perfeita de que se cobrem como um escudo as cóleras resignadas.”
“— Calma! — disse o boticário. — Trata-se apenas de ministrar algum possante antídoto. Qual é o veneno?
Charles mostrou a carta. Era arsênico.
— Pois bem — retomou Homais, seria preciso fazer a análise dele. Pois ele sabia que era preciso, em todos os envenenamentos, fazer uma análise; e o outro, que não entendia, respondeu:
— Ah! faça! faça! Salve-a…
Depois, voltando para perto dela, deixou-se cair no tapete e permanecia com a cabeça apoiada na beirada da cama, a soluçar.
— Não chore! — disse-lhe ela. — Logo eu não atormentarei mais você!
— Por quê? Quem a forçou?
Ela replicou:
— Era preciso, meu amigo.
— Você não era feliz? É culpa minha? Fiz tudo que pude, no entanto!
— Sim… é verdade…, você é muito bom, você!
E ela passava-lhe a mão nos cabelos, lentamente. A doçura dessa sensação sobrecarregava a tristeza dele; sentia todo o seu ser desmoronar de desespero diante da ideia de que ele devia perdê-la, quando, ao contrário, ela confessava por ele mais amor do que nunca; e ele não achava nada; não sabia, não ousava, a urgência de uma resolução imediata acabando por transtorná-lo ainda mais.
Ela havia acabado, pensava, com todas as traições, as baixezas e as inumeráveis cobiças que a torturavam. Não odiava ninguém, agora; uma confusão de crepúsculo se abatia em seu pensamento e, de todos os ruídos da terra, Emma não ouvia mais que a intermitente lamentação daquele pobre coração, doce e indistinta, como o último eco de uma sinfonia que se distancia.”
“Ela voltou o rosto lentamente e pareceu tomada de alegria ao ver de repente a estola roxa, sem dúvida reencontrando no meio de uma tranquilidade extraordinária a volúpia perdida de seus primeiros arroubos místicos, com visões de beatitude eterna que começavam.
O padre levantou-se para apanhar o crucifixo; então ela alongou o pescoço como alguém que tem sede e, colando os lábios sobre o corpo do Homem-Deus, depositou ali com toda a sua força expirante o maior beijo de amor que jamais houvera dado. Em seguida ele recitou o Misereatur e a Indulgentiam, mergulhou o polegar direito no óleo e começou as unções: primeiro nos olhos, que tanto tinham cobiçado todas as suntuosidades terrestres; depois nas narinas, ávidas de brisas tépidas e de odores amorosos; depois na boca, que se tinha aberto para a mentira, que tinha gemido de orgulho e gritado na luxúria; depois nas mãos, que se deleitavam aos contatos suaves, e finalmente na planta dos pés, tão rápidas outrora quando corria para a satisfação de seus desejos, e que agora não andariam mais.
O padre enxugou os dedos, lançou no fogo os flocos de algodão molhados de óleo, e voltou a sentar-se junto da moribunda para lhe dizer que ela devia agora juntar os seus sofrimentos aos de Jesus Cristo e abandonar-se à misericórdia divina.”
“Os problemas de dinheiro logo recomeçaram, o sr. Lheureux excitando de novo o seu amigo Vinçart, e Charles se empenhou por quantias exorbitantes; pois nunca quis consentir em vender o menor dos móveis que lhe tinham pertencido. Sua mãe ficou exasperada com isso. Ele indignou-se mais com ela. Ele tinha mudado completamente. Ela abandonou a casa.
Então cada um se pôs a aproveitar. A srta. Lempereur cobrou seis meses de aula, embora Emma não tivesse tido nenhuma (apesar daquela fatura quitada que ela havia mostrado a Bovary): era um acordo entre as duas; o alugador de livros cobrou três anos de assinatura; a sra. Rolet cobrou o porte de umas vinte cartas; e, como Charles pedisse explicações, ela teve a delicadeza de responder:
— Ah! Eu não sei de nada! Eram relativas aos assuntos dela.
A cada dívida que pagava. Charles acreditava que elas tinham acabado. Apareciam outras, continuamente.
Ele exigiu os atrasados de antigas consultas. Mostraram-lhe cartas que sua mulher tinha enviado. Então foi preciso pedir desculpas.
[...]
Foi por essa época que a viúva sra. Dupuis teve a honra de participar-lhe o “casamento do sr. Léon Dupuis, seu filho, tabelião em Yvetot, com a srta. Léocadie Leboeuf, de Bondeville”. Charles, entre as felicitações que lhe enviou, escreveu esta frase: “Como a minha pobre mulher teria ficado feliz!”.”
“Por respeito, ou por uma espécie de sensualidade que lhe fazia colocar lentidão em suas investigações, Charles ainda não tinha aberto o compartimento secreto de uma escrivaninha de palissandro que Emma usava habitualmente. Um dia, por fim, sentou-se à frente dela, girou a chave e empurrou a mola. Todas as cartas de Léon encontravam-se ali. Não havia mais dúvida dessa vez! Ele as devorou até a última, procurou em todos os cantos, todos os móveis, todas as gavetas, atrás das paredes, soluçando, urrando, desnorteado, louco. Descobriu uma caixa, arrebentou-a com um pontapé. O retrato de Rodolphe saltou-lhe em pleno rosto, no meio dos bilhetes carinhosos desarrumados.
As pessoas espantaram-se com o seu desânimo. Ele não saía mais, não recebia ninguém, recusava até ir visitar os seus doentes. Então acharam que ele se trancava para beber.”