Stella F.. 14/06/2024
Genial e Instigante!
O som e a fúria
William Faulkner - 2017 / 376 páginas - Companhia das Letras
O romance “O Som e a Fúria” foi publicado em 1929. É ambientado no Sul dos Estados Unidos, particularmente no Mississipi e vai narrar a decadência da família Compson, utilizando-se de quatro vozes narrativas onde o passado e o tempo são “personagens” importantes. As quatro vozes narrativas são Benjy, Quentin, Jason e o último capítulo se dá em terceira pessoa, mas com muita ênfase na Dilsey.
Um romance famoso de um autor que reverteu o conceito de fluxo de consciência, fazendo um texto quebrado, muitas vezes sem pontuação, falas em itálico, idas e voltas no tempo, brincando com o tempo, fazendo o leitor aceitar ou não o desafio. Um desafio bastante difícil, mas que ao final é recompensador.
Ao iniciar a leitura eu tive muitas dificuldades, principalmente na primeira parte, mas ao ler relatos de leitores do romance, me animei e continuei bravamente. E não me arrependo. O livro é excelente, genial e desafiante, e nos faz querer voltar, ou seja, precisar voltar em algumas passagens para seguir adiante, porque nada é entregue de maneira óbvia, tudo é trabalhado para que possamos degustar aos pouquinhos, compreender passo por passo, bem devagar. E isso é instigante.
O capítulo 1 (7 de abril de 1928) é narrada por Benjy, um menino bobo, que sempre precisa de alguém para guiá-lo. Passa-se em vários tempos, então a leitura deve ser atenta, porque logo de início pensamos que está no presente, mas depois está no passado, quando crianças, e não se sabe muito dos personagens, não é dito quem é mãe, pai, irmão. Aos pouquinhos vamos tentando saber quem são, e mesmo assim ficam dúvidas. Comecei fazendo anotações, mas depois elas mesmas já não valiam, porque havia entendido errado.
Após uma intensa investigação de leitura, vamos descobrindo que a mãe se chama Carolina, o pai Jason, os filhos Benjy (antes Maury), Caddy, Quentin, Jason. Há o tio Maury e a neta Quentin. Os empregados são Dilsey e seus filhos. A mãe está sempre reclamando do Benjy, como se fosse um bebê, um problema que não tem jeito, o Luster implica com Benjy por ele ser chorão com 33 anos, e a Caddy o trata com muito carinho, o leva para passear e faz suas vontades. Há cenas importantes como quando as crianças estão no rio nadando, e vê-se um desentendimento entre os filhos dos empregados, entre os filhos da família Compson, uma grande amizade entre os irmãos Caddy e Quentin, com muitos diálogos. Há o aniversário do Benjy, a cena do Natal e a mãe sempre sofrendo, doente, a cena do balanço narrada neste capítulo será muito importante para esclarecer alguns detalhes, e a Dilsey sempre a ajudando e segurando as pontas da família. Ao longo do capítulo sabemos que a troca de nome de Maury para Benjy foi por medo de azar. O Benjy está sempre gritando, fazendo sons ensurdecedores. Ele é surdo-mudo. A grande maioria da família preferia que ele fosse internado em algum lugar, mas a irmã, Caddy, o protege. Aconteceu algo bem grave com ele, que só ficamos sabendo bem mais à frente na narrativa. Algo inacreditável! “Ele sabe muito mais que as pessoas pensa.” disse Roskus. “Ele sabe quando chega a hora de cada um, que nem aquele perdigueiro. Se ele soubesse falar ele dizia quando que vai chegar a hora dele. Ou a tua. Ou a minha.” (pg. 35)
O capítulo 2 (2 de junho de 1910) tem como narrador o Quentin. Ele está cursando Havard e o personagem principal aqui seria o tempo. Está muito presente o relógio, fala-se dele sempre, o relógio que o pai deu a ele. É como se Quentin corresse contra o tempo, apressado, sempre olhando o relógio da praça, para cumprir algum tipo de plano. Ele quebra o relógio, vai na loja, fica querendo ver a hora cheia, chega atrasado na escola, pega o trem, faz a mala, e parece que está decidindo se vai para o casamento de alguém (provavelmente da irmã Caddy). Está muito presente aqui as sombras. Ao mesmo tempo tem os diálogos ou lembranças de diálogos com seu pai, os seus ensinamentos. E após um relato direto por algumas páginas, que parece mais linear do que o capítulo anterior, começam novamente textos em itálico com recordações do Benjy e outras lembranças. Nesta parte vemos uma pontuação ou falta dela completa. Uma palavra emendando na outra, e entrelaçando as frases em itálico, que seriam o fluxo de consciência. Os parágrafos são como uma colcha de retalhos que temos que ir juntando. Entre os pensamentos/lembranças de Quentin está a Caddy ter escolhido se casar com um cafajeste e ela dizendo que tem que se casar (deve estar grávida) e em relação à mãe querer levar embora com ela somente o filho Jason já que os outros filhos não gostam dela. Quentin conseguiu cursar a faculdade porque venderam o estábulo de Benjy para ele estudar e depois para a Caddy se casar. Essa situação preocupa a Caddy e faz Quentin prometer que cuidará de Benjy e do pai, este um fumante em vias de morrer. Benjy vê o dia do casamento da Caddy e fica urrando debaixo da janela. Enquanto isso, Quentin pega um trem, desce, acompanha uns meninos que estão pescando, e decidindo onde irão pescar, e tem umas passagens bonitas, poéticas, mas bastante herméticas e as falas do pai sobre o ser humano são bastante melancólicas. Há uma bonita passagem de um encontro do Quentin com uma menina, supostamente italiana a quem ele oferece pão na padaria. Nessa segunda parte já entendemos um pouco melhor o enredo, retornando muitas vezes à primeira parte para retomar algumas cenas. Há um mistério sobre uma carta e as malas que volta no quarto para pegar, mas subtende-se o que ele pretende fazer, pelos movimentos de todo o capítulo. “Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse. Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios.” (pg. 79)
O capítulo 3 (6 de abril de 1928) é narrado por Jason (filho). É apresentado em uma escrita mais linear, com muitos diálogos e uma formatação mais tradicional em sua maior parte. Aqui alguns fatos vão ficando mais claros. O capítulo trata bastante da relação da Caddy e sua filha, Quentin. Sabemos que a Caddy foi abandonada pelo marido, e que sua filha foi criada pela avó e com o dinheiro de Jason, que após a separação do casal ficou sem o emprego prometido, e fica ressentido porque não teve a oportunidade do irmão Quentin e agora tem que trabalhar em uma lojinha qualquer. Jason tem um comportamento rude, grosseiro, sua fala é sempre áspera e maldosa, é preconceituoso principalmente em relação a negros e judeus. Com o desenrolar da narrativa tomamos conhecimento que está dando um golpe na mãe, finge ser sócio da loja, mas modifica o livro-caixa. A mãe acredita nele piamente. Caddy tenta ver a filha, e Jason a engana, a mostra de longe. Ela está proibida de entrar em casa e seu nome nem é citado ou mencionado à filha Quentin. O comportamento da filha repete o da mãe, que era muito namoradeira, e ficou grávida antes do esperado. Mesmo não convivendo, é como se a história se repetisse. Todas as despesas da casa são da sua alçada do Jason. Os embates entre ele e Quentin são geniais e os diálogos fortes, que nos prendem à narrativa. Aqui eu pude perceber muitos eventos antigos e voltar ao capítulo 1 para rever algumas cenas, e a principal delas foi a cena do balanço, quando a Quentin está saindo com um jovem do circo que se instalou na cidade. Ele usa uma gravata vermelha. Há uma insinuação de que a Quentin (filha) se parece muito com o Quentin (irmão), além de esclarecer o que aconteceu de tão terrível com o Benjy (ver acima). Tudo que o Jason queria era conseguir o seu dinheiro de volta, dinheiro que ele achava que deveria ter sido dividido entre os filhos e não só beneficiar alguns. Apesar do comportamento nojento do Jason este foi meu capítulo preferido, o que li com mais prazer e compreensão. “Quer dizer, até onde é possível fazer isso com um negro. Esse é o problema dos criados negros, quando eles estão há muito tempo com a gente eles ficam tão metidos a besta que não prestam mais como criados. Acham que mandam na família toda.” (pg. 212)
O capítulo 4 (8 de abril de 1928) é narrado em terceira pessoa, mas foca principalmente na Dilsey, ajudante da família. Um capítulo mais linear com diálogos excelentes, embates e debates muito bons, com frases simples que remetem ao tópico do capítulo 3. Jason continua roubando a mãe e até possui uma caixa em seu quarto com o dinheiro guardado. Continua perseguindo a sobrinha Quentin e a ofendendo com palavras ofensivas ao seu modo de se maquiar e se vestir. A mãe se culpando por não ter sinalizado ao marido sobre sua decisão de vender o os bens em favor de dois filhos, e não ter dado uma oportunidade ao Jason. Apesar disso, continuado egoísta, chamando a atenção para sua doença, sobrecarregando a Dilsey. A maldade do Jason é clara, e ele persegue tanto a sobrinha que ela um dia sai pela janela, apesar da avó trancá-la toda noite, e rouba o dinheiro do tio. Benjy continua gritando e babando, mas se acalma quando vai para a igreja e ouve música. Algumas cenas remetem ao Natal narrado no capítulo 1. O Luster (filho da Dilsey) sempre tem que tomar conta do Benjy apesar de claramente detestar, e a mãe sempre está dando broncas nele. No final do capítulo 4 reaparece novamente a personagem Frony (filha da Dilsey). “Elas entraram. Não era um quarto de moça. Não era um quarto de ninguém, e o leve odor de cosméticos baratos e os poucos objetos femininos e outras tentativas grosseiras e inúteis de torná-lo feminino tinham apenas o efeito de deixá-lo ainda mais anônimo, emprestando-lhe aquele ar morto e estereotipado de transitoriedade dos quartos de bordéis. (pg. 287)
Amei a leitura e a técnica do autor, e se você consegue não desistir no primeiro capítulo, então como li nas resenhas, é só deixar fluir que tudo se encaixa, quase tudo. Nunca fui de retornar para ler os capítulos de novo, e o fiz enquanto estava lendo o terceiro e quarto capítulos. E agora após finalizar os textos de apoio estou relendo o primeiro capítulo de novo. O ensaio anexado do próprio autor esclarece muitas dúvidas e os textos do tradutor e suas escolhas e o texto de Sartre, um pouco mais complexo, também ajuda em muitos fatos, principalmente porque fala do tempo na obra de Faulkner. Não sei se entendi tudo, mas gostei dessa experiência diferente de não estar tudo dado a priori, que provavelmente cada leitor vai ter uma experiência diferente da de outro leitor. Meu primeiro Faulkner! Adorei!