Eric 21/08/2023
O Homem é o somatório de todas as desgraças
Situado no final da década de 1920, no sul dos EUA, "O Som e a Fúria" narra a decadência da família Compson, uma grande família aristocrática que, após a guerra civil e as crises econômicas subsequentes, faliu tanto financeira quanto moralmente. Acompanhamos a decadência dessa família através das perspectivas dos irmãos Benjy, um deficiente intelectual, Quentin, um perturbado mental, e Jason, um homem brutal responsável por garantir a sobrevivência da família. Além disso, temos a visão do narrador focada em Dilsey, a empregada chefe da casa, que testemunhou os tempos de dor e glória dos Compson.
O epicentro dessa decadência é Caddie, a irmã de personalidade livre, porém, para a família conservadora, uma pessoa com uma promiscuidade marcante. Desde cedo, ela tinha vários relacionamentos, o que feria a honra dos Compson. O casamento da irmã gerou crises para cada irmão. Para Benjy, houve a saudade da única pessoa que cuidava dele, além de Dilsey. Já para Quentin, um ciúme doentio, pois nutria um amor incestuoso por Caddie. E, por fim, a dor da frustração e revolta para Jason, devido a promessas não cumpridas.
Apesar de um enredo aparentemente simples, a genialidade de "O Som e a Fúria" está na construção ousada de seu texto. Faulkner fragmenta o tempo cronológico e lança os pedaços no tempo psicológico de cada personagem. Benjy, por ser deficiente, não consegue diferenciar o tempo presente do passado, suas lembranças se misturam com o momento atual. Quentin, perturbado mentalmente, narra seu passado e presente em um fluxo de consciência visceral, onde o autor brinca com a ausência de acentuações e com pensamentos que começam e não se concluem, além da quebra repentina do tempo. Nos dois últimos capítulos, o autor já trabalha de forma mais linear, esclarecendo grande parte do que não entendemos com Benjy e Quentin.
Diante dessa estrutura inovadora, é necessário ter perseverança. A narrativa não é fácil, mas também não é impossível. A recompensa é ótima no final. Se concluir a leitura já traz um sentimento de missão cumprida, é na releitura que sentimos toda a potência do texto. A releitura é sugerida até mesmo pelo autor e funciona como uma luz em meio ao obscurantismo. É genial ver como as peças vão se encaixando, detalhes inicialmente banais ganham proporções gigantescas e conseguimos mergulhar profundamente nos sentimentos dos personagens.
É uma experiência inigualável. Há muito tempo não encontrava tanta solidez nos personagens como encontrei acompanhando os Compson. Faulkner realiza um trabalho primoroso de construção psicológica. Como leitor, me vi esmiuçando cada palavra para entender as perspectivas, principalmente com Quentin, o capítulo mais desafiador, denso e tenso.
Caddie é a personagem mais fascinante, mesmo sem ter voz alguma. Tudo que conhecemos dela é através dos olhares dos irmãos. Ela é o símbolo de toda transgressão e também representa um olhar machista do homem ao atribuir a culpa da decadência familiar sempre às mulheres.
Além disso, as marcas de um passado escravagista estão bem presentes na narrativa. O racismo e o servilismo são duas engrenagens que ainda sustentam o pouco de mordomia que resta dos aristocráticos. Isso é muito bem representado no capítulo de Jason, onde ele "trabalha muito" para manter seus empregados, tratando-os como se fossem animais.
Tudo é tão vivido, intenso e cheio de som e muita fúria. É ensurdecedor o grito de desespero de Benjy, é um surto explorar a perturbação de Quentin e revoltante acompanhar a ira inescrupulosa de Jason. Todos os Compson são brutais à sua maneira. Aqui, não há um final feliz, apenas um somatório de todas as desgraças, as mudanças nunca acontecerão. O único destino possível para essa família é continuar colhendo as frutas que plantaram, as quais, por sinal, são bem podres.
"O Som e a Fúria" é uma experiência que todos deveriam vivenciar. Recomendo muito essa leitura