Flávia Menezes 08/07/2022
QUER LER FAULKNER? SIGA O RITMO, E DEIXE QUE ELE CONDUZA.
?O Som e a Fúria?, de William Faulkner, publicado em 1929, teve em 1946 um apêndice acrescentado pelo autor, que oferece ao leitor informações detalhadas sobre a família Compson, de 1966 até 1945. E tenho que dizer que é interessante você chegar ao final da história, e se deparar com esses detalhes, que são descritos como se Faulkner escrevesse uma biografia minuciosa de cada um dos seus personagens.
?Ainda me lembro vividamente de, num inverno frio, passar dia após dia sentado na varanda enrolado num cobertor lendo ?O Som e a Fúria?, de William Faulkner?. Foi essa frase, do livro ?Minha Vida?, a autobiografia de Bill Clinton, que me fez imaginar como esse deveria ser um livro tão fascinante a ponto de fazer com que Bill se refugiasse solitário em uma varanda, com um cobertor envolta do seu corpo para lhe aquecer do frio, sem conseguir desgrudar os olhos da leitura dia após dia. E foi então que, quando 2022 começou, eu resolvi incluí-lo na minha meta do ano aqui no Skoob.
É claro que esse não é um livro de fácil leitura, e se você entrar nas opiniões do Skoob, vai ver que algumas pessoas desistiram dele logo de início. Mas aqui, eu quero ser honesta e fazer uma advertência: esse não é um livro para se ler, quando buscamos por entretenimento.
A literatura de Faulkner se caracteriza por ser uma escrita complexa, com parágrafos longos, e longos períodos com pontuação irregular, esparsa, quando não, inexistente, que se intercalam com parênteses e travessões que acolhem outros longos períodos. Essa forma de escrita é chamada de ?fluxo de consciência? (do inglês stream of consciousness), que foi inaugurada por Proust, e refinada por Joyce, Woolf e outros escritores que fazem parte do Modernismo, e exige do leitor uma profunda cumplicidade e extrema capacidade de concentração. Por isso mesmo é que Bill Clinton, mesmo sendo inverno, se distanciava de tudo e todos, e sentava-se sozinho à varanda, para se concentrar totalmente na leitura desse livro.
Antes de falar dessa história, eu gostaria de deixar uma dica para leitores que desejam conhecer o autor, mas não estão acostumados a esse tipo de narrativa, mais complexa. Em ?Para se ler como um Escritor?, Francine Prose ensina a arte do ?close reading?, que é um método que retrata a leitura atenta, densa, feita linha a linha, favorecendo uma melhor compreensão do conteúdo. Tendo feito essa indicação, parto para a resenha propriamente dita.
A história é dividida em três narrativas, e como dito acima, teve um apêndice incluído anos depois pelo próprio Faulkner, que facilita muito a entender o que realmente aconteceu com cada um dos personagens.
A primeira narração é feita por Benjamin, nascido Maury, e apelidado por Benjy, após lhe ter sido dado um novo nome, um personagem de 33 anos que sofre de uma deficiência mental. E tenho que dizer, que essa é a parte mais complexa da história, e que faz com que muitos leitores desistam da leitura. Porém, se aqui vale a dica, eu simplesmente me permiti ser conduzida na confusão, sem tentar entender demais, ou sequer compreender quem eram os outros personagens que iam sendo citados.
Foi como entrar em um furacão, sem nada ver, só sentindo o vento forte me jogando de um lado para o outro, confiando inteiramente na genialidade do Faulkner para me conduzir, e me mostrar o caminho da saída. E acho que ter me entregue totalmente ao autor e à sua obra, me fez ter uma experiência realmente incrível.
Apesar da confusão da narrativa desarticulada, e com grandes saltos cronológicos, Faulkner brilhantemente ia revelando um pouco dos personagens, suas personalidades fascinantes, e detalhes que já traziam à tona fatos importantes vivenciados por aquela família. A cena em que Caddy e Quentin se banham no rio é uma das mais belas, delicadas e cheias de emoções, e já ali, podíamos compreender todo o clima do amor incestuoso que se delineava.
É claro que, nesses momentos em que podemos ter maior clareza da história, esse narrador (ao meu ver) passa a ser não o Benjy que sofre de um severo déficit cognitivo, mas um Benjy que está do lado de fora dessa mente com grandes limitações, como se ele pudesse olhar de fora, favorecendo assim a possibilidade de trazer um pouco do que acontece ao seu redor, incluindo partes em que podemos ver com clareza a dificuldade que uma pessoa com deficiência mental possui na interação entre seu mundo interno e o externo. Uma narração tecnicamente questionável, porém, que na prática funciona muito bem.
Na segunda narração, temos Quentin, que embora seja o filho mais inteligente, a ponto de passar em Harvard, é um homem atormentado pelo seu amor incestuoso pela irmã. É delicada a forma como Faulkner vai mesclando os fatos que acontecem com Quentin, com frases que trazem os pensamentos apaixonados do personagem. Você consegue sentir a intensidade que há dentro dele, e as frases são repletas de uma poesia que encanta e emociona. Apesar de ter ficado apenas implícito o que acontece com ele, mesmo nas entrelinhas, Faulkner sempre vai deixando pistas do que acontece com seus personagens.
Já a terceira narração é feita por Jonas, o filho mais moço, que acaba ficando responsável por ocupar o lugar do pai, após sua morte, tendo que cuidar não somente da mãe, mais do irmão com deficiência, uma sobrinha a quem ele não tem qualquer afeto, e uma casa repleta de escravos a quem ele precisa satisfazer para que possam cuidar das tarefas domésticas e dos cuidados com Benjy.
Apesar de ser um homem cruel, racista, e sexista, essa foi uma parte que me tocou bastante, por ser possível sentir a dor de quem não teve escolha, a não ser ter sua vida tomada pela disfunção familiar, que o aprisiona em um papel que não é dele (o provedor da casa paterna), sendo obrigado a renunciar aos seus próprios desejos, para ter que se responsabilizar pela família que ele nunca formou. O ódio que ele tinha das mulheres, me mostrava com tanta clareza a sua frustração pelo amor que ele jamais poderia viver, pois a vida já lhe havia imposto uma esposa (a mãe) e filhos (o irmão e a sobrinha).
E quer destino mais cruel do que ser obrigado a viver de uma forma que você não escolheu, apenas por lealdade à sua família? Mesmo que ele fosse um personagem terrível, confesso que a sua dor me tocou tão profundamente, que foi impossível odiá-lo.
A quarta narrativa foi, para mim, a mais sem sentido. Trazendo o foco para Dilsey, a escrava, eu confesso que senti uma narrativa encharcada de preconceito racial e religioso, além de ter sido bem mais repetitiva, o que me pareceu fazer sentido algum, apesar de também ter incluído alguns dados que ainda não haviam sido mencionados anteriormente.
Não darei 5 estrelas pela história, por realmente ter achado um pouco frustrante esse final, não por ter imaginado algo diferente, pois a história é perfeita do jeito que ela é. Mas por ter sentido que o ritmo aqui desacelerou de tal forma, que algo ali se perdeu. E para mim, o que mais se perdeu foi a toda a intensidade das emoções trazidas pela narrativa dos personagens anteriores, tendo esta sido dispersada de tal forma que esfriou. Como uma chama que se apaga rápido demais, quando ainda estamos sentindo o calor que havia ali.
De qualquer forma, não posso negar que essa foi uma experiência fascinante. Ler Faulkner pela primeira vez é deslumbrante, pois ele nos abre a um novo mundo onde a leitura exigente nos aprisiona, nos ensina um novo caminho, e nos faz perceber que as letras também têm ritmo. E é esse ritmo que vai nos envolvendo, e nos leva a essa trama de uma família disfuncional marcada por tragédias, incesto, doenças mentais e um mundo de frustrações, em que mesmo sem conhecer onde cada passo nos levará, sabemos que tudo o que precisamos fazer é deixar que o Faulkner nos guie.