lucasfrk 09/09/2022
O flagelo da modernidade camusiana
?É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe?. ? Daniel Defoe
A epígrafe que abre o livro de Albert Camus ? retirado de Robison Crusoé, o primeiro romance realista ? confere uma dimensão alegórica, pontuando a possibilidade de representar uma coisa pela outra. A Peste evoca a ocupação alemã da França durante a Segunda Grande Guerra. Nascido e criado na Argélia, Camus participara da Resistência francesa, sendo também, na sua função de jornalista, um dos fundadores do jornal de esquerda Combat. Em 1957 foi consagrado com o Prêmio Nobel da Literatura pelo conjunto de uma obra que o afirmou, apesar de uma curta vida, como um dos grandes pensadores do século XX. Seus títulos ensaísticos, como O Mito de Sísifo (1942) e O Homem Revoltado (1951); e literários, como O Estrangeiro (1942), A Peste (1947) e A Queda (1956), desenvolveram um humanismo baseado na consciência do absurdo da condição humana e na revolta como uma resposta ao absurdismo. Essa revolta, para Camus, levaria à ação e forneceria sentido ao mundo e à existência.
A Peste narra a história de trabalhadores que descobrem a solidariedade durante uma peste que assola a cidade de Orã, na Argélia. Através dos efeitos que o flagelo causa na sociedade local, A Peste aborda diversas questões relacionadas à natureza do destino e da condição humana. Narrado do ponto de vista de um médico envolvido nos esforços para conter a doença, o texto de Camus ressalta a solidariedade, a solidão, a morte e outros temas fundamentais para a compreensão dos dilemas do homem moderno. Dividindo-se em cinco blocos que correspondem à evolução da epidemia, o livro perpassa de acordo com as mudanças sazonais, por onde o narrador capta um estilo pessoalista ao descrever com certa cumplicidade os eventos e os personagens que compõem aquela cidade.
?Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas.? (p. 36)
Os eventos e a população da cidade são estritamente banais. Ao tomarem contato direto com a peste ? através de ratos que misteriosamente adoecem, subindo das profundezas do esgoto até a superfície para morrer em meio aos humanos ? a população estupefata-se, todavia não, a princípio não a vem como possibilidade de hecatombe, na medida em que a primavera ? mês de temperaturas amenas ? aproximava-se. Demonstra-se, então, uma hesitação por parte das pessoas em encarar o acontecimento insólito com veemência, em alterar o rumo banal de suas vidas e seus hábitos. Até mesmo as autoridades relutam em nomear a peste, a fim de que se evitasse o pânico desenfreado, acreditando-se que o flagelo não mais seria possível de acometer no Ocidente. As pessoas, portanto, preferem negar a realidade e acreditar que o acontecimento seja passageiro.
?Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos sempre em nós.? (p. 36)
Pode-se entender esse romance como uma reflexão singular sobre as consequências avassaladoras e desestruturantes que um estado de peste evoca socialmente. A existência do flagelo desvela a presença inexorável da morte e a grande questão que se coloca na obra de Camus é, justamente, a mortalidade do homem e a falta de esperança em uma vida futura. São três os personagens centrais de A Peste: Rieux, médico-narrador que mora em Orã, Tarrou e Rambert, de fora, que se encontram na cidade por razões desconhecidas. Antes da peste, tais personagens são inconscientes e despreocupados, desfrutando de pequenos prazeres. Esses personagens, de certa forma, transfiguram-se como personas do próprio autor.
A aversão do autor ao cristianismo, religião que causara inúmeras injustiças na história da humanidade, explicita-se através dos embates de Rieux com o padre Paneloux, em cujo primeiro sermão, carregado de imprecações bíblicas, culpabiliza os homens pela peste, como um castigo divino. O humanismo de Camus se dá na negação de um sentido superior, de uma metafísica, recusando a transcendência que dá sentido ao combate do médico. O papel do personagem é o de curar os homens, combatendo a peste. Camus não tem mais respostas do que perguntas, projetando as certezas materiais no personagem do médico, que se preocupa única e exclusivamente a atuar como agente de justiça e solidariedade para com os doentes.
Nesse sentido, assim como no cinema do nórdico Ingmar Bergman, Camus traça a responsabilidade moral individual diante do absurdo, a condição humana e o silêncio do mundo diante de nossa busca por sentido como ponto de partida para sua narrativa, questões muito caras à filosofia existencialista. Em ?O Sétimo Selo? (Seventh Seal, 1957), por exemplo ? no qual também há a presença de uma peste ?, Bergman evidencia o vazio de sua época, advindo do niilismo, do terror da guerra e do silêncio de Deus. Vê-se uma busca por respostas e a falta delas, mimetizando uma realidade consentir com o absurdo é a mais radical derrota humana. Com a literatura de Camus e o cinema de Bergman, portanto, é possível compreender o século XX e a modernidade através da arte.
?Proclamo que não creio em nada e que tudo é absurdo, mas não posso duvidar de minha própria proclamação e tenho de, no mínimo, acreditar em meu protesto. A primeira e única evidência que assim me é dada, no âmbito da experiência absurda, é a revolta.?
? Camus, O Homem Revoltado, Introdução
O paroxismo do absurdo na esfera do cotidiano também encontra convergência na magistral obra do lusitano José Saramago, O Ensaio Sobre a Cegueira (1995). Enquanto Camus se faz como profeta da revolta, Saramago é o profeta da cegueira, em que conduz a uma entrada nos labirintos de um tipo de sociedade burocrática, em que o outro não possui identidade enquanto não for nomeado. O absurdo no mundo camusiano e saramaguiano não contém nenhuma realidade metafísica ou uma divindade que se possa ir a busca de sua identidade. Em Camus o absurdo se dá numa demonstração de ?pecado sem Deus?, enquanto que, em Saramago, da ?vida sem nome?. Neste, o homem perdeu-se no anonimato e somente outro ser humano pode dar-lhe um nome. O contágio, em tais obras, revela escombros éticos, morais e políticos do gênero humano, implementando uma condição existencial (particular e coletiva, respectivamente) de desassossego com a existência.
Ambas adquirem um tom de alegoria, no qual, em Camus, solidifica a confiança na solidariedade humana frente ao caos proporcionado pela peste, representando o todo (a França e o Norte da África) pelo reduzido (a cidade de Orã). Em Saramago, contudo, apresenta-se na incapacidade do ser humano de lidar com a diferença de outrem. Há de se notar a diferença temporal, pois Camus escrevera na égide da modernidade, enquanto Saramago na pós-modernidade. O existencialismo de ambos provém da afirmação do espírito de colaboração em meio ao tempo do ?eu?, em tempos insuflados pela sociopatologia desenfreada de competição e de individualismo, na medida em que problematizam um modelo comum de sociedade que desmorona diante de uma epidemia.
?Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos.? (p. 36-7)
Diante do absurdo, o niilista se volta a um deslocamento da realidade, o que pode gerar um profundo ressentimento ao tentar lidar com as frustrações das relações humanas. A crise camusiana, que ?afeta os afetos?, ressignifica a realidade banalizada das personagens e desloca o eixo identitário com a erupção do fato insólito. Assim como Saramago, ao deslocar o leitor à dimensão de alteridade para falar da normalidade, Camus usa da epidemia dos ratos para desvelar os comportamentos humanos e a sua condição. Para Camus, por mais absurda que seja a existência (e sua morte foi-lo, num acidente de viação), com suas arbitrariedades e sua violência escatológica ? como Saramago compõe seu romance ? a resposta para ela é a mais simples e descomplicada possível: apenas viver e, na vida, encontrar a felicidade.
?[?] o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.? (p 256)