spoiler visualizarPaulo 17/05/2022
Desespero e esperança
A obra do existencialista Albert Camus narra a ocorrência da epidemia de peste bubônica na cidade de Orã. O romance descreve os estágios da doença e as reações psicológicas conflitivas dos concidadãos da cidade – a negação da epidemia, a aceitação, a angústia, a indiferença, o desespero, a esperança – sob a perspectiva do médico Bernard Rieux.
Não há explicação para o surgimento e desparecimento da doença, o que reflete a concepção existencialista do absurdo da vida e da absoluta falta de sentido da existência humana. O romance possui 3 eixos principais de personagens que refletem visões diferentes de mundo.
O médico Rieux e seu amigo Tarrou (que integrava uma equipe de voluntários no combate da doença) são pintados como heróis existencialistas, que encarnam os valores da caridade, solidariedade e sacrifício, e que pretendem ser “santos sem Deus”. Eles trabalham no combate à doença até a exaustão, são racionalistas, homens da ciência. Tarrou morre da peste quando a doença já estava sendo erradicada e o médico Rieux sobrevive.
A visão teológica é retratada na figura do padre Paneloux, que ensinava que devemos amar o que não conhecemos, ainda que seja a peste, porque do sofrimento advém o crescimento humano. Nessa perspectiva, o homem deve aceitar os acontecimentos que não compreende, imputando-os aos desígnios divinos. O padre termina morto brutalmente pela doença, recusando-se a aceitar tratamento médico.
Por fim, há a história de Cottard, que representa o arquétipo de Don Juan na trama, um criminoso que tentara o suicídio e que se aproveita da impunidade proporcionada pela peste para se enriquecer. Terminou louco.
Na visão de Camus, o médico Rieux representa o homem existencialista completo, que procura se solidarizar com os outros, mas que nega completamente qualquer forma de transcendência. A atitude caridosa de Rieux com seus doentes contrasta frontalmente com sua relação protocolar com sua mãe e absolutamente fria com sua própria esposa, a qual, no início da trama, mudara-se de cidade para tratar de uma doença. O médico queda-se indiferente ao saber, por carta, da morte de sua mulher.
Talvez não tenha sido a intenção do autor, mas a obra serve de ponto de partida para reflexões profundas. A conduta de homens estéreis que “amam a humanidade” mas que não conseguem ser caridosos em relação ao seu círculo próximo de convivência insere-se num contexto mais amplo de fortalecimento do Estado em detrimento da família, do super-homem prometeico de Nietsche e da presunção soberba de que homem pode “consertar” o mundo. Enfim, a obra nos leva, ainda que indiretamente, a refletir nesses fatores que culminaram no fortalecimento de Estados totalitários no século passado.